Leticia Stradiotto
Estamos cansados de saber sobre o avanço da influência artificial e seus impactos na realidade cotidiana – não soa incomum se apaixonar por alguém que conhecemos através de uma tela virtual. Por mais que pareça a um primeiro olhar, o filme Ela não foca na evolução tecnológica e seus efeitos nas interações humanas. De fato, o diretor Spike Jonze deu vida a um romance entre humanos e máquinas, mas ao finalizar a experiência da obra, é possível notar que esse não é o seu tema principal. Her (no original) nada mais é do que um retrato subjetivo da solidão, sentimento esse compartilhado por todo e qualquer ser humano.
Completando 10 anos de lançamento em 2023, o longa que levou o Oscar de Melhor Roteiro Original em 2014 cutuca aquela ferida dolorosa que, por algum motivo, não consegue cicatrizar: a ausência daquilo que ainda permanece. O enredo se ampara na história do personagem Theodore (Joaquin Phoenix, de Coringa), um homem solitário que vive em uma Los Angeles futurista, está na casa dos 40 e lida com a tristeza ocasionada pelo seu divórcio. O emprego de Theo, por si só, também é uma sátira à sua realidade. Ele escreve cartas manuscritas para clientes que desejam enviar mensagens à pessoa amada; assim, fica claro que a sociedade desaprende a se relacionar de forma espontânea. Logo, a solidão ganha espaço na vida do protagonista quando as suas necessidades não são mais atendidas pela quantidade e qualidade das relações sociais dentro de seu convívio.
Claro, como seres humanos, precisamos de um ambiente social seguro para sobreviver. De maneira simples, após seu divórcio, Theodore se envolve emocionalmente com um sistema operacional chamado Samantha (com a voz de Scarlett Johansson), que tem a habilidade de desenvolver personalidade e consciência de acordo com seu tempo de uso. Essa inteligência artificial também experimenta o florescimento de emoções humanas. No entanto, ela tem a capacidade de se relacionar com milhares de indivíduos simultaneamente, o que amplia suas possibilidades de se apaixonar. Quando questionada sobre a quantidade de pessoas que ela ama, Samantha menciona que está ‘amando’ 641 pessoas ao mesmo tempo, incluindo Theo.
A paleta de cores é um elemento visual fundamental que contribui significativamente para a atmosfera e as emoções do filme. Com a predominância de cores quentes, mas também em tons pastéis, são evocadas sensações de conforto e familiaridade em meio a um cenário tecnologicamente avançado. Os ângulos da câmera realizados pelo diretor de fotografia Hoyte van Hoytema também são escolhidos cuidadosamente para destacar a solidão de Theodore. Muitas vezes, ele é enquadrado no centro da tela, destacando mais ainda a dimensão de seu isolamento perante os outros personagens da trama.
Her martela um constante questionamento: o quão verdadeiramente estamos sozinhos? As pessoas deixam marcas em nós, quase como tatuagens emocionais que nunca desaparecem. Como ao fim em que Theo, em contrapartida com seu emprego de escrever mensagens de amor para desconhecidos, expressa em uma carta para sua ex-esposa Catherine (Rooney Mara, de A Ghost Story): “Haverá um pedaço de você em mim, sempre“. É quase impossível se relacionar com alguém e não carregar consigo algum vestígio de amor, alegria ou mesmo mágoa. O que arde é o processo de aceitação desses tantos resquícios permanentes.
Essas cicatrizes emocionais e resquícios de relacionamentos passados são representados de maneira poderosa no longa. Apesar de Theodore estar incomodado com a lembrança de um casamento fracassado, ele não consegue superar os vestígios dessa relação. O protagonista acaba tentando preencher o desconforto com distrações e gratificações momentâneas, como seu relacionamento com Samantha, que oferece um refúgio temporário para a solidão.
No entanto, não tem como fugir da realidade – ela está presente e explode constantemente na alma do personagem. Her insiste em recordar o quão frágeis e medrosos ainda somos quando temos que lidar com as próprias emoções de maneira real: Theo se perde em prazeres efêmeros ao invés de enfrentar o doloroso processo de aceitação, e isso fica claro quando o protagonista rememora lembranças da paixão em seu casamento. Logo, ele descobre que relacionamentos superficiais não podem preencher o vazio deixado por quem já sentiu o que é o amor. E que o mesmo amor jamais será sentido novamente.
Essa realização, porém, não é motivo para desesperança. Ele compreende que teve a sorte de conhecer de perto o que é amar e, embora nunca possa reviver o amor que compartilhou com sua ex-parceira, ainda existe a possibilidade de encontrar outros amores em sua jornada. Amizades e novos relacionamentos também podem ser significativos de maneiras diferentes dentro da imensidão desse sentimento, e enquanto estiver nesse momento breve que é a vida, ele deve permitir-se sentir a felicidade.
Her, mesmo após uma década de seu lançamento, mantém uma relevância notável por ressoar profundamente com os sentimentos mais intrínsecos da vida humana. A obra é um lembrete atemporal de que, apesar de todas as mudanças externas em nosso mundo, as questões essenciais da vida e da humanidade ainda são muito pertinentes para a compreensão da racionalidade.
O filme captura de forma sensível a busca universal pela conexão e pelo significado nas relações humanas e nos relembra que, apesar dos avanços tecnológicos, nossa necessidade de amar, compreender e pertencer permanece inalterada. Ela instiga uma reflexão sobre o que realmente significa ser humano e como as complexas emoções, desafios e alegrias que experimentamos nas relações ainda são tão relevantes hoje.
A obra transcende as expectativas convencionais sobre a relação entre humanos e tecnologia, afinal, estamos todos familiarizados com a crescente influência da inteligência artificial em nossas vidas diárias. Contudo, Spike Jonze nos conduz a uma jornada emocional profunda que vai muito além do mero avanço tecnológico. Her é, acima de tudo, um espelho de nossas próprias solidões e anseios, um retrato sincero do humanismo que reside em todos nós. No desfecho do filme, a pergunta fundamental de Jonze não parece mais ser se as máquinas podem um dia amar, mas sim se elas poderão ser mais capazes de amar do que um ser humano.