Gabriel Oliveira F. Arruda
Em 11 de abril de 2019, Hellblade: Senua’s Sacrifice foi lançado para o Nintendo Switch, marcando a chegada de um dos jogos mais revolucionários da atual geração para o último console que faltava. Lançado para PC e PlayStation 4 em agosto de 2017, e posteriormente para o Xbox One em 2018, Hellblade se propôs a entregar uma experiência single player de apenas algumas horas e com pouco valor de rejogabilidade, custando apenas metade do preço de um grande lançamento.
Mais do que isso, Hellblade marca uma mudança fundamental no desenvolvimento de jogos digitais, pois entrega uma experiência que não pede ao jogador que se divirta ou que esqueça o mundo a sua volta, mas que antes escute: escute sua protagonista, escute as vozes na cabeça dela e escute a si mesmo, no final das contas.
Quando o jogador inicia Hellblade: Senua’s Sacrifice pela primeira vez, ele acha que sabe exatamente o que esperar. Após ter visto alguns dos trailers lançados até então e um gameplay simples de 10 minutos, alguns dos diários de desenvolvimento publicados no YouTube, ele acha que o jogo será uma narrativa linear que, com sorte, vai explorar a psicose de sua protagonista de alguma maneira narrativa nova e interessante. Por um lado, o jogador não está enganado, mas por outro – ele não faz ideia do que o espera.
Hellblade não usa a psicose de Senua apenas como um adereço narrativo ou como um artifício barato, mas sim como uma mecânica conceitual aplicada em cada aspecto de seu design.
O primeiro nome que aparece nos créditos iniciais é o de Paul Fletcher, creditado como Mental Health Advisor (Consultor de Saúde Mental), seguido por Elizabeth Ashman Rowe, Historical Advisor (Consultora Histórica). Fletcher é professor de neurociência na Universidade de Cambridge, especialista em psicose, enquanto Rowe é uma historiadora, também da Universidade de Cambridge, especializada em história e cultura escandinavas durante a Era Viking e a Idade Média.
É estranho esses serem os primeiros nomes creditados no desenvolvimento de um jogo digital, mas após jogar algumas horas de Senua’s Sacrifice, a importância desses dois nomes se torna aparente.
A ponte para Hel
A história conta a jornada de Senua (interpretada por Melina Juergens), uma guerreira celta que deve atravessar Hel, o reino que na mitologia nórdica é o lar daqueles que não morreram de maneira honrada, para reaver a alma de seu amado das mãos da deusa Hela.
Apesar do jogo contar com inimigos físicos tais como guerreiros nórdicos desonrados e deuses vingativos, fica claro a partir da cena inicial que o maior inimigo será a própria percepção de Senua. O mundo a sua volta reage à sua psicose e as vozes que falam o tempo todo em sua cabeça podem rebaixá-la ou guiá-la, dependendo da situação.
E elas estão sempre lá, então é melhor ir se acostumando. Premiado por seu excelente design de som, Hellblade é com certeza melhor apreciado usando um bom fone de ouvido ou um headset poderoso. As gravações binaurais das vozes que se conflitam o tempo todo na mente de Senua tem um efeito bizarro sob a psique do jogador: no lugar de ícones de mapa ou de saúde para indicar onde ele deve ir ou quantos golpes ainda pode levar, tudo o que o jogo oferece são essas vozes.
No meio de um confronto, elas alertam quase sempre que um golpe estiver vindo ou quando um inimigo estiver esperando para atacar por trás, enquanto que em exploração, comentam o progresso de Senua até então e pressionam a personagem cada vez que ela fizer uma curva errada ou demorar para se movimentar.
Mas as vozes e os conflitos são apenas uma parte dessa jornada: Senua irá se deparar com desafios e quebra-cabeças que distorcem sua percepção de tempo e espaço e que vão pouco a pouco torcendo sua sanidade até que tudo que ela possa ver sejam sombras.
Num dos mais comuns, ela é obrigada a procurar formações no ambiente que se assemelham a runas nórdicas para passar por portas que, até ali, parecem completamente desobstruídas. Esses tipos de quebra-cabeça, assim como muitos outros, são referências aos sintomas obsessivo-compulsivos na psicose que aflige Senua. Ela é fisicamente incapaz de abrir as portas antes de achar as runas, mas nada indica que as portas não possam ser abertas além de um símbolo fantasmagórico pairando sobre elas.
Mais tarde no jogo, Senua é obrigada a passar por quatro desafios para reforjar a lendária espada Gramr, dada por Odin ao herói Sigmund e mais tarde usada matar o dragão Fafnir, descrita como uma das únicas coisas capazes de matar um deus.
Durante um desses desafios, Senua perde sua visão, no que é provavelmente uma das passagens mais tensas e bem construídas da atual geração: nela, o jogador e Senua são ameaçados por inimigos que emitem sons grotescos, possuem formas apenas vagamente definidas e que nunca são completamente visíveis. Se há uma expressão que possa descrever essa sequência, ela é “terror absoluto”. O que a segue é, obviamente, gratidão absoluta.
É uma marca na qualidade do design das criaturas e do ambiente que esse trecho não é, por si só, difícil: as criaturas são lentas e a velocidade com que elas detectam Senua varia muito entre os ambientes pelos quais ela transita. Mas a Ninja Theory sabe que a dificuldade não é a raiz do medo, não para Senua; o medo está na possibilidade de se deparar com algo que não se possa descrever, algo que seja impossível de se entender, e chegar apenas perto o suficiente para que o medo se aposse de você por inteiro.
Na sua espada ainda pulsa um coração
Melina Juergens era apenas uma editora de vídeo na Ninja Theory quando foi chamada para fazer testes de maquiagem e iluminação enquanto a desenvolvedora procurava por uma atriz para viver a personagem. Três anos depois, Melina sobe ao palco das maiores premiações da indústria dos jogos para receber diversos prêmios por sua performance como Senua.
Não foi uma tarefa fácil, como a própria Melina explica em um dos diários de desenvolvimento do jogo: não só ela nunca havia atuado profissionalmente antes, mas atuar era um verdadeiro pavor seu. Durante as primeiras gravações, em que pediram para ela ler algumas linhas de diálogo, ela pediu a todos que se virassem de costas para que não pudessem vê-la. Mas isso acabou servindo como uma vantagem para interpretar Senua, já que seu medo refletia o medo da própria Senua ao se deparar com as multitudes de horrores em Hel e ao inferno de sua própria mente.
Hellblade também ganhou um prêmio por sua tecnologia de cinematografia em tempo real na GDC (Game Developers Conference) de 2016, e que permitiu ao diretor e roteirista do jogo, Tameem Antoniades, trabalhar diretamente com a performance de Juergens enquanto ela ainda trabalhava com a captura de movimentos da personagem, com câmeras apontadas diretamente nos seus olhos em todas as horas e pontos de referência milimetricamente espaçados em seu rosto.
Além disso tudo, Melina também buscou apoio fora de tela, se consultando com pessoas que sofrem de psicose e esquizofrenia, acompanhando as experiências delas para construir uma performance que, diferente de muitas outras, respeitasse aqueles que vivem diariamente com esses sintomas e ainda assim não fazer pouco caso deles.
E tudo isso valeu a pena. Melina Juergens entrou para a história dos jogos digitais com uma das melhores performances de captura de movimento e dublagem já vistas em um jogo. Em dezembro de 2017 ela subiu ao palco do The Game Awards, uma das maiores premiações da indústria, para receber a estatueta de Melhor Performance das mãos de ninguém menos do que Andy Serkis.
Toda expressão do rosto e todo movimento do corpo de Senua é também uma expressão de sua personalidade e de suas capacidades físicas e mentais. A sua condição nunca é vista como algo que a impeça de ser uma guerreira funcional: os demônios que a assolam são mais fundos e mais complexos do que isso.
Nem a sua jornada se resume a “derrotar” sua psicose, porque nenhuma condição mental é tão simples assim: as vozes em sua cabeça são as vozes dela mesma, vozes que contam a sua história de diversas maneiras, vozes que expressam seu medo, sua dúvida e sua raiva e toda uma miríade de emoções, algumas vezes interrompendo uma a outra e se repetindo de maneira excruciante, enquanto outras vezes oferecem palavras de apoio a uma Senua quase derrotada e abatida. Na introdução, o próprio jogador é recebido e identificado por uma dessas vozes, chamado para acompanhar a busca da protagonista.
O dano que Senua sofre ao longo do jogo não é só físico, mas também mental, e mais uma vez a mecânica do jogo brilha ao ser capaz de traduzir os sintomas da psicose para elementos tangíveis. Após seu primeiro conflito com os homens do norte (que o jogador é incapaz de vencer, não importa por quanto tempo tente), ela tem uma visão de si mesma morrendo e apodrecendo e, quando acorda, percebe uma escuridão se formando em seu braço direito.
O jogo então diz para o jogador: “A podridão sombria irá crescer cada vez que você falhar. Se ela alcançar a cabeça de Senua, sua busca estará terminada e todo o progresso será perdido.” Esse é um sistema conhecido como permadeath, em que a morte de um personagem jogável acarreta na perda do progresso na narrativa e o jogador é forçado a reiniciar o jogo, e é um sistema controverso até no melhor dos casos.
Em Hellblade: Senua’s Sacrifice, não fica claro exatamente quantas vezes o jogador pode morrer antes que a podridão chegue a cabeça de Senua, mas é um sistema muito efetivo justamente por causa disso. O combate em Hellblade nunca fica repetitivo porque cada luta é percebida pelo jogador como uma nova oportunidade de perder todo o progresso feito. É um sistema injusto, muito como a própria condição de Senua, que é capaz de deixar paranóico até o mais experiente em jogos de combate.
Não haverão mais histórias depois desta
É estranho tentar por a experiência de se jogar Hellblade: Senua’s Sacrifice em palavras. É uma experiência tão intimista e tão diferente de tudo o que você já viu que é fácil se sentir sobrecarregado. Quando chegamos ao final do jogo, o que se segue não é uma explicação lógica para o que você acaba de presenciar, muito pelo contrário: o final de Hellblade é emocionalmente devastador, perturbador e complicado. Não é algo que você compreende tanto quanto sente. Assim como o resto do jogo, é difícil pôr em palavras.
Em seu cerne, é um jogo sobre solidão e companheirismo, compaixão e crueldade, covardia e sacrifício: coisas diametralmente opostas que são frequentemente encontradas juntas. O caminho pelo qual Senua segue é tortuoso e exaustivo; ela é constantemente atormentada por espectros do passado e vozes que imploram para que ela dê meia volta e esqueça da missão que ela se comprometeu a realizar. Senua sabe que isso não é mais possível, como uma das vozes não se cansa de lhe dizer:
“A escuridão te tocou. Todo mundo pode ver no vazio dos seus olhos, um olhar afastado da vida. […] E você queria se render? Abandoná-lo para encontrar paz com os deuses? Não. A escuridão não vai permitir. Então, você caminhará para o covil da fera, olhar no olho dela e ir à guerra. Esta é a sua missão. Esta é a sua jornada. É tudo que você tem.”
Mas essa não é a única voz na cabeça de Senua, é apenas a mais cruel: a que fala nos lugares mais escuros, quando ela se encontra mais vulnerável aos pensamentos mais sombrios que beiram ao comportamento suicida. Há ainda a voz de uma mulher, que reflete melancolicamente sobre a condição de Senua após todas as vitórias e derrotas, nos dando um insight duplo sobre Senua e sua psicose:
“Dizem que sonhos são visões de nossas memórias, pensamentos e medos vistos por nosso olho interior. Mas e se cada um de nós está sempre dormindo, mesmo quando acordado? E se nós somente vemos o que o nosso olho interior cria para a gente? […] Talvez seja por isso que as pessoas tinham medo de ver o mundo pelos olhos dela. Pois se você acredita que a realidade de Senua é distorcida, você deve aceitar que a sua também pode ser.”
Escrever essa crítica até aqui foi relativamente fácil: foi ao mesmo tempo uma maneira de reviver uma experiência muito especial e de extrair novos sentidos dela e assim, apreciá-la ainda mais. Mas tirar uma conclusão disso tudo? Parece quase impossível. Mas assim como a maioria das coisas impossíveis, é só uma questão de tempo até aparecer alguém idiota o suficiente para tentar.
Hellblade: Senua’s Sacrifice é um jogo sobre dor e sofrimento: as dores que causamos uns aos outros, quer queiramos ou não e o sofrimento que só aqueles mais próximos de nós são capazes de infligir. Mas a verdade é que, se Hellblade fosse apenas sobre isso, nada o distinguiria de outras produções que visam retratar estados mentais diferentes da “norma”.
O que o jogo da Ninja Theory faz e o que o torna tão revolucionário é que ele não fetichiza o sofrimento por qual Senua passa ou tenta fazer com que o jogador sinta pena dela. O que o roteiro de Tameem Antoniades faz tão bem é apresentar Senua primeiro como uma personagem e explorar sua psicose à partir daí. Em poucas palavras, Senua nunca deixa de ser a protagonista de sua própria história e sua psicose não é descrita como o único aspecto definitivo de sua personalidade.
Ela vive em um mundo cercado por vozes que querem confundi-la e fazê-ela achar que está amaldiçoada. A jornada pela qual ela passa, no jogo, é a jornada pela qual ela conta sua própria história e acha sua própria voz.
Hellblade é também um jogo sobre esperança; sobre como nos lugares mais escuros costumamos formar as amizades mais intensas, sobre como o amor é capaz de nos salvar de nossos impulsos mais sombrios, sobre como as memórias ruins não apagam as boas e, finalmente, sobre os sacrifícios que fazemos.
Se você ainda não se convenceu a pelo menos tentar dar uma chance à jornada de Senua, só há uma coisa que ainda pode te convencer. Duas semanas após seu lançamento, a Ninja Theory publicou, através do canal oficial da PlayStation no YouTube, um vídeo de elogios ao jogo.
A única diferença é que esses elogios não vinham de críticos especializados, mas sim dos próprios jogadores, que mandaram mensagens à desenvolvedora parabenizando-a por seu sucesso estrondoso ao retratar a experiência de se viver com psicose. O vídeo também é delineado por imagens feitas a partir do Modo Foto presente no jogo:
Desde seu lançamento original em 2017 e seu relançamento para os consoles da Microsoft e da Nintendo, Hellblade vendeu mais de um milhão de cópias, ganhou 11 prêmios diferentes por seu design de som, sua narrativa e seu revolucionário retrato da saúde mental.
Em abril, após as metas de venda no novo console serem atingidas, a desenvolvedora fez uma doação de 25 mil dólares ao Mental Health America, uma instituição que tem por objetivo promover o bem estar mental nos Estados Unidos. Em outubro de 2018 o estúdio também ajudou a financiar uma bolsa de estudos promovida pela organização beneficente Head to Toe, que teria como enfoque treinar profissionais capacitados em lidar com pessoas com transtornos mentais. O nome da bolsa é “Senua’s Scholarship”.
Hellblade ganhou edições físicas para todas as plataformas e hoje a Ninja Theory faz parte da Microsoft, trabalhando em um novo título ainda não anunciado.
Para que se dê continuidade a revolução iniciada por Hellblade: Senua’s Sacrifice e jogos como What Remains of Edith Finch, que também exploram transtornos mentais como depressão e ansiedade usando a interatividade inerente a jogos digitais, é preciso que mais desenvolvedoras, tanto as independentes quanto as já estabelecidas na indústria, percebam o verdadeiro potencial desse entretenimento: jogos digitais são capazes de nos transportar para espaços mentais radicalmente diferentes dos nossos. Capazes de criar vínculos com pessoas que não existem e de ao mesmo tempo retratar o mundo em que vivemos de maneiras inteiramente novas. São capazes de representar coisas que o cinema, a televisão e a literatura apenas sonham em fazer e dão espaço a vozes que nunca foram ouvidas. Então, por favor, vamos ouvir essas vozes, pelo menos dessa vez.
Quando contamos uma história sobre um de nós, contamos uma história sobre todos nós.
“Nunca esqueça como é ver o mundo como uma criança: onde cada folha de outono é uma obra de arte, cada nuvem que se move, um filme, cada dia, uma nova história. Nós também emergimos dessa magia, como uma onda no oceano, apenas para retornar ao mar. Não lamente pelas ondas, pelas folhas e pelas nuvens. Mesmo na escuridão, as maravilhas e belezas do mundo não nos abandonam – sempre estão lá, esperando serem vistas.”