Nathalia Tetzner
Fugir da madrasta má por um princípe, encontrar a fada madrinha, perder o sapatinho de cristal e assistir a carruagem voltar a ser uma mera abóbora. A história da princesa Cinderela é um clássico que tem início, meio e um final popular entre os seres que habitam a Terra, mas amam sonhar com as estrelas: o famoso ‘felizes para sempre’. Em paralelo com a vida real, os contos de fada são construções fictícias almejadas por uma mídia cada vez mais idealista, sendo o meio responsável pela narrativa ilusionista elaborada em torno da monarquia britânica. Na série documental Harry & Meghan, a diretora Liz Garbus ajuda o duque e a duquesa de Sussex a derrubar as cortinas da fantasia criada sobre eles e a instituição.
Se nos livros a protagonista loira e de olhos azuis enfrentou obstáculos em sua caminhada romântica, Meghan Markle precisou sacrificar a sua liberdade pelo casamento com príncipe Harry e teve a sua imaginação transformada em abóbora antes mesmo dos sinos da meia-noite tocarem Afinal, Markle nunca se encaixou no padrão aristocrata da família real do Reino Unido. Mulher negra, atriz e ativista, ela foi inicialmente vista como uma oportunidade para os diversos povos da Commonwealth se sentirem representados, porém, a sua luz logo se tornou uma ameaça aos velhos costumes. Em uma jogada de mestre, o casal escolheu registrar a sua versão dos fatos por meio do streaming Netflix, uma plataforma ainda maior que os 56 países membros da organização intergovernamental.
Harry & Meghan é consequência da enorme bola de neve formada ao longo da estadia nos castelos da realeza e que, agora, finalmente está engolindo tudo e todos por onde passa. O estopim para a produção foi a entrevista para a apresentadora de televisão estadunidense Oprah Winfrey, concedida um ano após renunciarem aos cargos da coroa e na qual fazem uma sequência de revelações, incluindo a denúncia de racismo. Pela primeira vez, o casal narrou com franqueza o ambiente miserável escondido dentro dos luxuosos portões guardados por soldados, conseguindo deixar no público a ânsia por bis. Lançado no mesmo ano do falecimento da célebre Rainha Elizabeth II, o seriado não somente questiona toda a estrutura da instituição, como também marca a inversão da caça às bruxas.
Vilanizados pelas manchetes sensacionalistas, os pombinhos armam uma arapuca para os tablóides britânicos profundamente ligados aos escritórios dos membros da monarquia. Porém, do mesmo modo que a carruagem da lua de mel se desfez rapidamente, a falta de sensibilidade da montagem – tarefa destinada a 7 profissionais – em saber o momento exato para encaixar o tema, acaba mais satisfazendo e gerando conteúdo polêmico para a mídia do que qualquer outra coisa. O documentário tropeça em um certo dilema da exposição e, com isso, a legitimidade da retomada da narrativa pelos que tiveram as suas vidas pessoais exploradas perde o sentido quando a trama se desloca abruptamente para a propaganda das iniciativas de cunho social do casal.
Em relação ao magnetismo que atrai a compaixão de quem assiste a série da Netflix, o ditado popular explica: “filho de peixe, peixinho é”. Harry traz de volta para as telas um vislumbre do olhar sensível de sua mãe e o debate sobre a atuação nociva dos paparazzi ganha força, dessa vez, com Markle como vítima dos flashes. Através do fator histórico do falecimento de Diana e de sua própria juventude estampada nas capas de jornais, ele injeta o teor de drama necessário para retratar a realidade. Os diversos momentos em que Lady Di é citada não ocorrem em vão: a obra busca unir as melhores comparações entre ela e Meghan para arrancar algumas lágrimas, sendo provavelmente o último ato coerente do casal antes de exagerarem na dose.
Dividido em 6 episódios, Harry & Meghan parece não saber o que deseja ser no começo e, depois, encontra uma solução apenas para se perder novamente. Liz Garbus, conhecida pelos documentários indicados ao Oscar The Farm: Angola, USA (1998) e What Happened, Miss Simone (2015), experimenta de tudo na direção a fim de organizar filmagens caseiras e fotografias exclusivas. Seguindo uma ordem cronológica, ela parte do início do romance até os nascimentos dos filhos, Archie e Lilibet, mas, em meio a todo o caos, a vulnerabilidade de Meghan frente ao discurso de ódio e as incontáveis ameaças direcionadas pelas redes sociais caracteriza a cena de destaque da produção, encarregada de completar a linha de raciocínio da trama que converge para esse ponto de ruptura.
“Eu queria compartilhar uma história que eu escrevi sobre o homem que eu amo e como nós nos conhecemos. Vamos chamar isso de contos de fada moderno”. Do mesmo modo que a Cinderela enfrentou obstáculos peculiares que, se não escritos com tamanha criatividade ninguém acreditaria, as revelações apresentadas pelos duque e duquesa de Sussex são, no mínimo, chocantes. Brigas entre irmãos, conflitos na véspera do casamento e todas as outras consequências da saída da realeza são atos tão dignos de um conto de fadas moderno quanto o ‘felizes para sempre’. Harry & Meghan irrita quem deseja a perfeição cinematográfica, desperta a fúria dos tablóides e entrega o que o seu público-alvo pede: as razões pelas quais uma carruagem luxuosa se transformou em uma simples abóbora.