Nathan Sampaio
Um dos gêneros literários mais antigos existentes é a epopeia. Caracterizada por ser um poema longo que utiliza aspectos narrativos, ela narra feitos heroicos, passagens gloriosas e apresenta personagens icônicos, e pode ser considerada um registro histórico de sua época. Embora pesquisadores apontem que esse estilo de narrativa está extinto desde o século XVIII, sua influência em obras modernas ainda pode ser observada. Em 2024, comemora-se os 25 anos de uma das animações influenciadas pelo gênero: o anime One Piece.
A história começa com o maior pirata do mundo, Gold Roger, sendo capturado e executado pela Marinha. Porém, antes de sua morte, ele revela que seu tesouro, o One Piece, está escondido em algum lugar do mundo para que alguém possa encontrá-lo. A promessa de riquezas atrai milhares de pessoas que vão em direção aos mares. Vinte anos depois desse acontecimento, Monkey D. Luffy, um jovem que sonha em se tornar o novo Rei dos Piratas, parte em busca dessa herança perdida contando apenas com seus poderes de borracha, um chapéu de palha e sua convicção. Por isso, antes de alcançar seu objetivo, ele precisa encontrar companheiros e um navio para poder embarcar nessa aventura.
Produzida pela Toei Animation em 1999, a versão animada é uma adaptação do mangá escrito por Eiichiro Oda, lançado dois anos antes, em 1997. O autor se baseia fortemente em histórias épicas e epopeias para construir o universo e os arcos da narrativa. Os principais indicativos dessa inspiração são a duração da obra, que está em publicação contínua desde seu primeiro capítulo e, somente agora, se aproxima de um desfecho, e o tom grandioso que a trama adquiriu ao longo dos anos. Embora o número de episódios – que ultrapassa 1100 – possa parecer intimidador para novos espectadores, essa quantidade é justificada pela complexidade da história que o autor busca contar.
A proposta é acompanhar Luffy e seu bando desde a formação até o auge de cada personagem. Essa abordagem ambiciosa aproxima o anime dos contos épicos e foi extremamente bem executada ao longo dos anos, o que ajudou a tornar a obra única. A evolução dos personagens é visível e muito verossímil, considerando as experiências pelas quais passam durante a jornada. Observar as mudanças de personalidade entre o início e o presente da animação é emocionante e gratificante, especialmente considerando o longo tempo que os espectadores investem acompanhando a trama.
Oda dedica bastante tempo ao desenvolvimento dos personagens e da relação entre eles, evidenciando que não são apenas um bando, mas uma família, que ao longo da jornada ganha alcunha de chapéus de palha. Essa sensação de união não se restringe apenas aos protagonistas, já que o próprio espectador é convidado pela narrativa a navegar ao lado dos piratas. Luffy é o pilar do grupo, e, mesmo sendo teimoso e inflexível, é dono de um carisma imenso, reforçado pela interpretação genial de Mayumi Tanaka. Por meio de sua empatia e senso de justiça, o garoto consegue transformar desconhecidos e inimigos em amigos próximos.
O próprio bando se forma a partir das experiências pessoais de cada membro, com Luffy mostrando como o jovem de corpo de borracha foi capaz de libertá-los de traumas passados e dar novos objetivos a todos. O sonho ambicioso e aparentemente impossível de se tornar o novo Rei dos Piratas é visto como uma piada por alguns, mas para os chapéus de palha, é algo que, inevitavelmente, acontecerá. Todos se apoiam tanto nas dificuldades quanto nos desejos pessoais.
O grupo – formado por Zoro, Usopp, Sanji, Nami, Chopper, Robin, Brook e Jinbe – é muito diverso, com cada membro possuindo suas próprias qualidades e defeitos, porém quando estão juntos todos se complementam. A dinâmica dentro do barco é uma das maiores qualidades do anime, pois ela é muito divertida e agradável de acompanhar. Com o passar do tempo, o espectador passa a reconhecer a função e o espaço que cada personagem ocupa dentro do grupo e de que forma eles trabalham para atingir seus objetivos finais.
Os protagonistas têm seus desejos individuais que garantem profundidade à trama individual e à construção de mundo, isso porque cada um dos piratas principais possui um sonho, que se relaciona de certa forma com o universo em que ele está inserido. Robin, por exemplo, deseja desvendar o que houve durante o chamado ‘Século Perdido’, um período histórico do qual não há nenhum registro. Observar como os chapéus de palha trabalham em conjunto em prol dos seus propósitos e aos poucos se aproximam deles é altamente recompensador e gratificante.
A construção de mundo em One Piece também é um dos fatores que tornaram a obra tão cultuada e amada. Cada ilha visitada é única, apresentando sociedades inspiradas em aspectos históricos, mitológicos e culturais de diferentes povos, como Alabasta e Water 7, que são baseadas no Egito e em Veneza, respectivamente. Oda também traz elementos fantásticos por meio das mais diversas raças que habitam seu universo. Essa diversidade de locais e personagens traz frescor a cada nova aventura. Além disso, trilhar o mesmo caminho do lendário Rei dos Piratas e descobrir pedaços de sua história é uma experiência mágica, é como desvendar um mito.
No entanto, o autor não retrata apenas a beleza do mundo, mas também levanta questões sociais importantes atualmente. Governos opressores, pobreza, fome, escravidão e a luta por direitos iguais são alguns dos temas abordados e discutidos na obra, sempre de forma aprofundada, empática e séria. O criador escolhe abordar assuntos tão pesados, para mostrar o quanto as maravilhas do cotidiano podem ser aniquiladas por problemas sociais tão desesperançosos. Diante desse cenário, a liberdade e a busca por uma sociedade mais justa e igualitária são temas recorrentes e que movem grande parte dos arcos, demonstrando que os protagonistas reconhecem os pobres do seu universo e lutam contra ele.
O autor deixa claro, já nos primeiros arcos, que os conceitos de ‘bem’ e ‘mal’ são ambíguos dentro de One Piece, pois assim como existem piratas, como o bando do chapéu de palha, que desejam trazer mudanças positivas à todas as sociedades que visitam, também existem marinheiros que buscam apenas proteger os mais ricos, a fim de almejar uma patente mais alta e um salário mais significativo. Os próprios antagonistas das histórias, mesmo que sejam o cúmulo da vilania, ainda possuem algum tom de cinza dentro do enredo, isso é fascinante e demonstra a complexidade desse universo.
Reconhecendo essas adversidades, alguns membros do bando da tripulação possuem sonhos que visam erradicar algum dos problemas da sociedade. Chopper, por exemplo, quer criar uma cura para todas as doenças, já Jinbe deseja acabar com a segregação e o preconceito que existe entre homens-peixe e humanos. Demonstrando, mais uma vez, que o contexto em que os protagonistas se inserem é muito importante para a construção de suas personalidades e desejos, assim como ocorre na realidade.
Em vários momentos, One Piece transbordou às telas e se fez presente em dilemas da realidade, principalmente por seu foco na luta pela liberdade daqueles que enfrentam diariamente a opressão. Luffy, ao longo dos anos, se tornou um símbolo de justiça social e esperança, lutando pelos mais fracos e necessitados. Um exemplo recente ocorreu nos protestos em prol da libertação palestina, em que ao lado da bandeira do país foi hasteada a do bando do chapéu de palha.
O impacto cultural de One Piece é absurdo e, com o passar do tempo, a obra apenas cresceu em popularidade, conquistando milhões de fãs ao redor do mundo, o que foi suficiente para a Netflix encomendar uma adaptação live-action, que estreou em 2023 e tem uma segunda temporada prevista para 2025. No entanto, mesmo com tantos méritos, a longa duração da história trouxe alguns problemas, especialmente relacionados à adaptação animada feita pela Toei.
O anime possui um ritmo arrastado, que só piorou com o tempo. Nos primeiros anos, era comum que a animação adaptasse de dois a um capítulo e meio por episódio, mas em arcos como Wano, esse número diminuiu para menos de meio capítulo por episódio. Isso resulta em arcos de história inflados, em que a sensação é de que todos os acontecimentos demoram a ocorrer, tornando a experiência cansativa. A Toei reconhece isso, tanto que recentemente foi anunciado um remake da temporada da Ilha dos Homens-Peixe, que será reduzida de 57 para 21 episódios.
Por estar no ar há mais de duas décadas, é esperado que a tecnologia mude e as técnicas de animação evoluam, e isso pode ser visto conforme o anime avança. Porém, as primeiras temporadas após o salto temporal possuem uma qualidade muito abaixo do esperado, a sensação é de que os animadores estavam pouco inspirados ou havia pouco orçamento, pois nada justifica o quão preguiçosa é a feitura desses arcos. Mesmo com histórias boas, a forma como é feito deixa tudo menos atrativo. Apenas recentemente, em Wano e Egghead, que a adaptação melhorou seu quesito técnico.
Outro problema recorrente na adaptação é a hipersexualização de personagens femininas. Nami, Robin e outras coadjuvantes têm seus corpos distorcidos pelos animadores, e ângulos de câmera estranhos são usados para objetificá-las. A objetificação das mulheres tem sido alvo de críticas há anos por fãs, que se sentem incomodados em ver protagonistas tão complexas serem alvos de uma visão machista e antiquada. Mesmo com os comentários negativos em relação a esses aspectos, não há esperança de que isso mude, muito pelo contrário, pois agora a produtora expandiu a sexualização para os personagens masculinos também, tendo seu foco em Zoro e Franky.
O próprio criador está ciente dos problemas presentes no anime da Toei, tanto que em 2023 foi anunciado um remake da animação de One Piece, produzida pelo estúdio Wit, famoso por Spy x Family e Vinland Saga, e com direção de Masashi Koizuka, reconhecido por sua condução em Shingeki no Kyojin. Ainda não há data de estreia definida, mas as artes conceituais já foram divulgadas, aumentando as expectativas dos fãs. O público espera que a nova versão melhore o ritmo da obra, pois segundo estimativas pode-se reduzir de 1100 episódios para apenas 350, e que a hipersexualização seja deixada para trás, focando apenas na grande história que está sendo contada.
Apesar dos defeitos sérios na animação, a qualidade da história, a profundidade dos personagens e o vasto universo criado são mais do que suficientes para prender o espectador. One Piece, ou Wan Pīsu no original, é uma obra ambiciosa, que se propõe a ser uma epopeia moderna, refletindo tanto a beleza quanto os desafios da sociedade atual. E, sem dúvida, consegue atingir esses objetivos com perfeição.
Luffy e seu bando do chapéu de palha estão marcados na cultura pop como símbolos de luta contra a opressão e como a representação perfeita de como uma família deve agir, sempre brincando uns com os outros, mas também os apoiando quando necessário. Por mais problemático que seja, o anime conseguiu espalhar a odisseia do pirata que estica para todos os sete mares e tomara que esse épico continue sendo discutido e propagado por muito tempo ainda.