Cinco anos após a estreia de sua última temporada, o legado de Glee continua vivo e mostrando que é muito mais do que as tragédias que o cercam.
Luize de Paula
A verdade é que nunca haverá nenhuma série como Glee. Desde Nashville, passando por Brilhante Victória e até mesmo novas produções como High School Musical: O Musical: A Série, Glee (criação de Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan) nunca será apenas um programa de televisão, mas um fenômeno cultural. Mesmo cinco anos após a estreia de seu último episódio, os Tik Toks, perfis no Twitter e podcasts (inclusive dos próprios atores) zoando cenas, tramas e momentos da série fizeram com que ela saísse de núcleos específicos das redes sociais e encontrasse o público geral.
Outro motivo para a série voltar a ser tão comentada foi a morte de mais uma das atrizes mais amadas pelos fãs. No último dia 13 de julho, depois de dias de buscas, o corpo de Naya Rivera foi encontrado em um lago da Califórnia, no mesmo dia em que a morte de Cory Monteith completou 7 anos. Além da morte dos nossos eternos Finn e Santana, o ator que interpretava o bad boy Noah Puckerman, Mark Salling, se suicidou em 2018 após ser acusado de posse de pornografia infantil. E quando parece ter acabado, a lista de escândalos envolvendo o elenco da série continua aumentando e surpreendendo, trazendo à tona novamente a chamada “Maldição de Glee”.
Ainda esse ano, diversos integrantes acusaram a atriz Lea Michele de racismo e de tratar mal seus colegas de trabalho no set. Em 2019, a atriz Melissa Benoist (de Supergirl) denunciou a violência doméstica que sofreu de seu ex-marido, Blake Jenner, ambos novos integrantes do clube Glee na 4ª e 5ª temporada. Mas apesar de tudo que aconteceu nos bastidores e na privacidade dos atores, Glee foi uma série que marcou uma geração.
É quase impossível falar de Glee e não falar sobre representatividade. A voz dada à pessoas LGBTs na série se destaca em diversos momentos, como o coral de 300 transexuais cantando para o recém transicionado treinador Beiste (Dot-Marie Jones), liderados por Unique (Alex Newell), personagem também trans. Além disso, as trajetórias de Kurt (Chris Colfer) saindo do armário para seu pai e enfrentando o bullying de Karofsky (Max Adler), e a jornada de Santana em busca da aceitação de sua sexualidade (por ela e por sua família) foram importantes na vida de muitas pessoas, ajudando-as se entenderem e se aceitarem, assim como as personagens Blaine (Darren Criss) e Brittany (Heather Morris).
Outros personagens também fizeram os telespectadores se espelharem nas criações de Ryan Murphy, produtor e criador da série. No elenco original do clube Glee, uma aspirante a atriz da Broadway, um garoto desorientado, um cadeirante, um garoto gay, uma mulher negra e uma asiática gótica mostravam ao som de Journey que nunca devemos parar de acreditar. Eventualmente, personagens gordos, com síndrome de Down, dislexia, bulimia, transtornos psicológicos, latinos, católicos e judeus também foram introduzidos ao mundo do Mckinley High. E enfrentando suas dificuldades, ressaltaram que apesar de ser um refúgio, a música por si só não dá conta de solucionar a complexidade de seus problemas.
E, assim como na realidade, Glee não ficou ileso de ter seus momentos ruins. Através dos ásperos comentários de Sue Sylvester (Jane Lynch) sobre as coisas absurdas que a série relata em suas 6 temporadas, o próprio seriado mostra que nem sempre acerta. Desde Finn achando que um misto quente realizava seus desejos porque o pão tinha queimado com o formato do rosto de Jesus, até um episódio inteiro com fantoches.
Outro momento que aparentemente ninguém achava (ou pelo menos comentava) que era completamente fora da realidade são as cenas de anúncio dos vencedores das competições de coral. O fato de todos os corais que não eram o Nova Direções comemorarem o 2º ou 3º lugar com um sorriso no rosto, enquanto o clube de Will (Matthew Morrison) esboçava uma reação mais compreensível: a decepção de perder depois de trabalhar duro. Porém, nada se compara aos três episódios em que Quinn (Dianna Agron) tenta recuperar sua bebê, que foi adotada pela mãe de Rachel (Lea Michele), colocando livros de receitas de canibalismo infantil na casa dela como forma de incriminá-la.
Aos olhos de todos os fãs, uma das decisões mais absurdas dos escritores foi relacionada a Rachel Berry. Desde a sua primeira aparição cantando On My Own e – de maneira levemente irritante – explicando sua ambição de se tornar uma estrela da Broadway, Rachel é uma das personagens com a personalidade mais forte do show.
Determinada a ter o que quer e – assim como Tinker Bell – dependente de aplausos para viver, na 5ª temporada, a estrela do Novas Direções consegue o papel que sempre desejou: Fanny Brice, no elogiado musical Funny Girl. Mas para mostrar que nem sempre seus sonhos se realizam, os roteiristas fizeram com que Rachel desistisse do musical depois de algumas semanas de apresentação para trabalhar numa série de televisão sobre ela. Programa este que não passou de seu primeiro episódio, forçando Rachel a voltar para Lima.
É inegável que, a partir da quinta temporada, com a morte de Cory Monteith, a história começou a se perder. Se, em 2011, o maior problema dos escritores era decidir os destinos dos formandos e o futuro da série, após perderem o Finn em 2013, Ryan Murphy precisou fazer o possível e o impossível para que a série continuasse com os novos personagens. Mas não foi o que aconteceu.
Jake, Kitty, Marley, Ryder e Unique não foram capazes de trazer histórias novas que interessassem ao público (apesar da tentativa de engatar temas relevantes, como bulimia e um tiroteio na escola). Os fãs continuavam focados e interessados nos personagens das outras temporadas, talvez pelo carinho que foi construído por três anos ou pela monotonia do roteiro das últimas temporadas. Assim, todos – com exceção de Kitty – foram descartados no sexto ano da série, “transferidos para outras escolas” mesmo com assuntos inacabados.
Não que no sexto ano isso tenha melhorado. Diferente das outras temporadas, que têm 22 episódios, essa conta com apenas 13. Mesmo com personagens cheios de potencial mas mal explorados, poucas coisas fazem valer a pena assistir. Uma delas – além de seu episódio final – é a voz de Jane Lynch sendo explorada em duetos incríveis com Matthew Morrison e um episódio com dois casamentos LGBT de ships que são quase impossíveis de não gostar.
Mas ainda mais especial é o penúltimo episódio, gravado em 2015 e ambientado em 2009. No final, ele traz uma transição de Will virando as costas para ir embora e voltando à uma cena original do episódio piloto com Finn, numa cena de aquecer o coração. Já que ele não apareceu no episódio inteiro, os roteiristas acharam uma maneira de emocionar os fãs com uma referência ao personagem.
Além dos personagens e suas histórias, outro aspecto principal da série era a música. Com alguns episódios focando em mash-ups, álbuns e/ou artistas específicos, como os especiais de Lady Gaga e Billy Joel, a variedade de estilos musicais presentes na série é um de seus pontos mais fortes. Às vezes, fazendo um link com a história (como nos episódios Jessie’s Girl, Movin’ Out, Diva e Bust your Windows) ou simplesmente sendo cantadas pelos personagens sem contexto (como em What Does The Fox Say?).
Mas além de agradar desde os fãs de musicais clássicos da Broadway até os que gostam das músicas mais populares, as trilhas de Glee não apenas moldaram, mas também dominaram a indústria musical no início dos anos 2010. Durante seus seis anos de exibição, o programa conseguiu emplacar 207 músicas na Billboard Hot 100 (tabela musical padrão dos Estados Unidos que avalia a lista das cem músicas mais vendidas no decorrer de uma semana). Algumas até atingiram o Top 10 (Don´t Stop Believin, Teenage Dream e Loser like Me, uma de suas músicas originais), e essas conquistas da série foram superados apenas por Drake em 2020.
Não se contentando apenas com a série, o elenco ganhou uma turnê pelos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Irlanda em 2010 e 2011, incluindo a gravação de um filme estilo show e um documentário chamado Glee: The 3D Concert Movie. Além disso, a série também conseguiu duas temporadas de um reality show chamado The Glee Project, onde os inscritos competiam entre si para um papel na série. Rory, Unique, Joe Hart e Ryder são alguns dos personagens de vencedores e participantes do programa. Outro efeito de Glee foi seu impacto na representação das artes nas escolas. Antes da série, existiam apenas cerca de 200 competições de coral nos Estados Unidos, subindo para mais de 600 após sua estreia.
Mesmo com toda essa influência, muitas bandas e cantores se recusaram a deixar que Glee usasse suas músicas, como Kings of Leon e Slash do Guns N’ Roses. Enquanto outros artistas até participaram de alguns episódios, incluindo Neil Patrick Harris, Demi Lovato, Adam Lambert, Sarah Jessica-Parker, Ricky Martin, Lindsay Lohan, Perez Hilton, Britney Spears, Kate Hudson, Jonathan Groff e muito mais, atraindo novos espectadores.
Em um tributo a Finn, regado a músicas inesquecíveis que moldam e expressam os sentimentos dos personagens, o terceiro episódio da quinta temporada consegue ser o mais marcante da série. Para os fãs, é impossível não chorar nos primeiros 10 segundos com os personagens cantando Seasons of Love para um telão estampado com a foto do quarterback.
Mostrando o luto do elenco, o episódio conta com 6 músicas. Entre elas, está a canção I’ll Stand by You, entoada na primeira temporada por Finn no ultrassom de seu bebê, que desta é vez cantada por Mercedes (Amber Riley); Make you Feel My Love, em uma performance minimalista e impactante de Rachel; e If I Die Young, numa apresentação que nem a própria Naya, interpretando Santana, conseguiu conter as lágrimas. Estas canções e sua interpretações emocionantes foram capazes de se imortalizar e tomar outro significado para os fãs da série.
O final da série planejado por Ryan Murphy é contado por Rachel a Will no episódio tributo à morte de Finn. Sua personagem se tornaria uma estrela da Broadway, Finn teria se formado e daria as aulas no clube Glee. Rachel voltaria a Lima, andaria pelos corredores da escola, entraria no escritório de Finn e diria: “Estou em casa”. Seria o final perfeito da história, simbolizada pelas raspadinhas geladas na cara e a mão em formato de “L” na testa.
Mas com a morte de Cory, o episódio 13 da 6ª temporada, intitulado Sonhos Viram Realidade, é dividido em três momentos. Diferente de muitas séries que não mostram o futuro de seus personagens e deixam um final em aberto, a primeira parte se passa em 2015 mostra uma mistura de flashbacks e cenas ‘atuais’: Will vencendo seu campeonato nacional em 1993 como membro e atualmente como treinador junto a Rachel, Kurt e Blaine e o colégio William McKinley High se tornado um colégio focado nas artes, depois de anos de luta.
Cinco anos a frente de seu tempo real, Sue se candidata a vice-presidência dos Estados Unidos, com Becky (Lauren Potter) como sua guarda-costas. Enquanto isso, em Nova York, Kurt e Blaine viram celebridades e Artie (Kevin McHale) e Tina (Jenna Ushkowitz) tem seu filme no festival Slamdance. Já Rachel aparece grávida como barriga de aluguel para Kurt e Blaine, casada com Jesse St. James (Jonathan Groff) – que dirigiu o musical em que ela atuou. Por esse musical, Rachel ganha o Tony de melhor atriz em musical, como sempre sonhou desde que foi apresentada para o mundo em 2009. O que Ryan Murphy não previu em 2015 foi que o Tony seria adiado. E Emma (Jayma Mays) com seu TOC, provavelmente seria a pessoa mais cuidadosa de todas com a quarentena.
Como o encerramento não de um livro, mas de um capítulo, reunidos pela última vez no auditório do Mckinley recém nomeado como Auditório Finn Hudson, a vice-presidente dos Estados Unidos Sue Sylvester sobe ao palco com uma mensagem que emocionalmente, colocou um ponto final na série:
“No meu ponto de vista, o clube Glee não passava de um lugar onde vários covardes fracassados cantavam pra esquecer os problemas e ter a ilusão de viver num mundo que se importa com suas esperanças e sonhos. O que não tem nada a ver com a dureza do mundo real, onde não há lugar para decepções, mágoas e fracassos. E querem saber? Eu tinha razão. O clube Glee é exatamente isso. Mas errei com relação à covardia. É preciso muita coragem para ver o mundo não como é, mas como deveria ser.”
E com a última canção vista na série, afirmam que, apesar de tudo, eles viveram. Os membros do Novas Direções de todas as temporadas se juntam aos personagens que moldaram e fizeram de Glee o que é hoje: algo especial.