Humberto Lopes
No dia 05 de outubro de 2000, há 20 anos, ia ao ar no canal The WB o primeiro episódio da série norte-americana Gilmore Girls, uma comédia familiar carregada com dramas e referências da cultura pop que pipocavam nas telas em meio a diálogos rápidos e muitas xícaras de café. A série ambientada na cidade fictícia de Stars Hollow, em Connecticut, foi criada por Amy Sherman-Palladino e conta a história da mãe solteira Lorelai Gilmore (Lauren Graham) e sua filha Rory (Alexis Bledel). Na produção mãe e filha são extremamente amigas e possuem gostos muito parecidos, e talvez não a toa o canal SBT tenha se aproveitado disso para traduzir o nome da série para Tal Mãe, Tal Filha, forma que grande parte do público brasileiro teve contato com a trama.
Na primeira temporada vamos conhecendo as figuras da cidadezinha e poucas coisas acontecem. Descobrimos no comecinho que Lorelai foi uma jovem rebelde devido a sua origem conservadora na classe alta, e por isso ela tentou criar a sua filha o mais longe possível desse mundo. Rory, que nasceu quando a mãe tinha apenas 16 anos, é uma menina doce e estudiosa, praticamente a filha perfeita.
Mas como nem tudo são flores, apesar da série tentar mostrar que mesmo a imperfeição pode ser tratada com leveza e humor, diversos dilemas surgem na vida das duas. Lorelai protagoniza o primeiro deles ao pedir um empréstimo para os pais com o objetivo de pagar os estudos da filha, que sonhava em estudar em Harvard. Parece um pedido fácil, mas não para Lorelai, que fugiu de casa na adolescência e foi para Stars Hollow, lugar onde ela criou Rory e emancipou-se dos pais, Richard (Edward Herrmann) e Emily Gilmore (Kelly Bishop).
O empréstimo para que Rory estude no liceu privado de Chilton é cedido, mas existe uma condição: as duas teriam que jantar toda sexta-feira na casa dos Gilmore. Aí se inicia uma tradição que uniria Lorelai aos pais novamente. Entretanto, não significa uma melhora na relação entre eles, já que os embates entre Emily e Lorelai nunca cessam, e apesar de por vezes serem engraçados, são inexplicáveis. Uma birra que nunca se desenvolve, nem no encerramento da série.
De volta a pequena Stars Hollow, logo na primeira cena conhecemos Luke Danes (Scott Patterson), dono da lanchonete Luke’s, onde mãe e filha passam a maior parte do tempo bebendo café e falando extremamente rápido. Uma curiosidade é que boa parte de Gilmore Girls se passa apenas nesse cenário, inclusive a primeira cena da série acontece lá, no momento em que percebemos que Lorelai e Luke são bem mais que amigos, e isso se desenvolve ao longo de toda da história, mesmo que demore muito.
Falando em relacionamento, na primeira temporada é apresentado ao público Dean (Jared Padalecki, o Sam de Sobrenatural) com quem Rory namora por três longas temporadas. Essa relação foi bem além das telinhas, Alexis e Jared mantiveram um romance curto durante as gravações que só foi revelado em 2016, já que antes não passava de especulações.
Dean foi o primeiro beijo e ‘eu te amo’ dela, e com o decorrer da trama foi com ele que a protagonista perdeu a virgindade. É certo que boa parte do público, enquanto tudo isso acontecia, gritava um grande “Rory nããããooo”. E com toda a certeza ficaram muito felizes quando o novo namorado de Rory, e de Alexis, o bad boy Jess Mariano (Milo Ventimiglia, o Jack de This Is Us), chega na cidade.
Ele é sobrinho do Luke e rouba o coração da garota por um certo tempo. Enquanto Dean era exacerbadamente forçado e de forma enjoativa doce demais, Jess era marrento e impulsivo. Aliás a impulsividade marca esse relacionamento, que acabou bruscamente. Ele só vira as costas e vai embora.
Enquanto Rory vive dramas com namorados que odiamos e amamos, nas três temporadas iniciais Lorelai se envolve com o professor da filha, Max Medina (Scott Cohen), e passa por algumas recaídas com Christopher Hayden (David Sutcliffe), o pai da Rory. Mas, nada da relação entre ela e o Luke sair do imaginário, por enquanto.
Ainda ali na cidadezinha temos mais figuras incríveis, como Sookie St. James, melhor amiga de Lorelai e cozinheira no Dragonfly Inn, onde a protagonista é gerente. A maravilhosa Melissa McCarthy, conhecida por comédias como Missão Madrinha de Casamento, interpreta a personagem, que é uma das favoritas de Gilmore Girls.
Michel Gerard, interpretado por Yanic Truesdale, também faz parte do núcleo da pousada, e prova com seu humor ácido que ele é a combinação perfeita ao lado da personalidade extremamente doce e atrapalhada de Sookie. Aliás, é interessante destacar que um dos talentos da Amy Sherman-Palladino é colocar em cenas personagens que se completam e não deixam a história ficar cansativa.
Recorrente ao lado de Rory temos Lane Kim (Keiko Agena), a melhor amiga de Rory desde o Stars Hollow High. Ela é apaixonada por música e é baterista, mas isso ela esconde da mãe, uma coreana conservadora. Lane é a personagem mais injustiçada de toda a série. Ver a talentosa adolescente virar mãe tão cedo foi um furo horrível no roteiro. Sinceramente, todos nós esperávamos que ela tivesse a mesma oportunidade que Rory teve, e quebrasse os limites da pequena cidade com sua banda. A sétima temporada, que não teve a mão de Amy Sherman-Palladino, errou muito nisso, o que faz os fãs pensarem que talvez esse não fosse o destino da personagem.
Ainda no quesito amizades, Paris Geller (Liza Weil, a Bonnie de How to Get Away with Murder) é a amiga que Rory fez em Chilton e segue com ela até Yale, onde as duas viram roommates. No começo, elas não se gostavam, mas a sua relação muda bastante ao longo da série. Aliás, ela é uma das personagens mais bem construídas de Gilmore Girls. O desenvolvimento de Paris é fantástico. A personagem é extremamente competitiva e estressada, coisas que não mudam com o tempo, mas vemos o grande amadurecimento que ela teve até a sua vida adulta. Mesmo que parecesse que o mundo fosse acabar quando ela não entrou em Harvard, Paris seguiu obstinada e com a personalidade forte que a acompanhou por toda a produção, e que a permitiu conquistar seus sonhos.
Entre as outras figuras que andam por Stars Hollow, temos a Miss Patty, que é o equivalente a vizinha fofa que te para na rua para fofocar sobre tudo o que acontece, e Taylor Doose, uma figura bem controversa e muito engraçada. Na trama ele é a pessoa que mais ama a cidade e faz ela acontecer, custe o que custar.
Por último, Kirk Gleason (Sean Gunn). Ele é o excêntrico faz-tudo da cidade, o Pereirão de Stars Hollow, que muda de trabalho mais do que as protagonistas tomam café. Ele consegue salvar todas as sete temporadas e merecia com certeza mais tempo em cena. É inegável que a criadora acertou muito nesse personagem, que mesmo sendo secundário possui as melhores falas do programa.
Todos esses personagens fazem da pequena Stars Hollow um paraíso de conto de fadas. Pode ser o clima da região, os cafés entre mãe e filha, os diálogos carregados de referências, tudo na série consegue gerar uma sensação de nostalgia. Entre esses efeitos confortáveis também temos a trilha sonora composta por Sam Phillips, responsável por todos os coros de “lálálás” que escutamos nos episódios.
Aliás, quem já assistiu Gilmore Girls e escuta “If you’re out on the road / Feeling lonely, and so cold” sabe que estamos falando de Where You Lead, música tema cantada por Carole King com a sua filha Louise Goffin. A canção é uma regravação feita com base na versão lançada em 1971 por King no disco Tapestry. Exclusivamente mãe e filha fizeram uma adaptação dela para a série, mudando o sentido da letra que antes falava do amor entre um casal para uma relação maternal.
Até quando Rory vai para Yale, uma reviravolta para ela e Paris que tinham como o maior objetivo da vida Harvard, sentimos falta da cidadezinha. Nas três primeiras temporadas o núcleo fechado apenas naquelas ruas é capaz de proporcionar uma sensação de conforto indescritível, que vai se quebrando conforme as protagonistas vão evoluindo, mas que retorna com força na sétima temporada, que apesar disso é a pior de todas.
Existe uma divisão clara entre o antes e depois de Yale, assim como a mudança na relação entre mãe e filha que acontece com a chegada de Logan Huntzberger (Matt Czuchry). Talvez o melhor namorado de Rory, que veio no momento mais conturbado da vida da garota, e entretanto foi o relacionamento mais normal que ela teve. O final do casal na sétima temporada foi um turbilhão de confusões na cabeça de todos os fãs, quando eles terminam parecia tudo bem e do nada um fim sem muita explicação, faltando criatividade para explorar o tema nos momentos finais da série.
Gilmore Girls ilustra bem o momento de muitas crianças e jovens que são hiperestimados e quando chegam na universidade dão de cara com o mundo real. Até então Rory era o floquinho de neve especial da sua cidade, mas na vida adulta ela passa a ser a pessoa que trancou o curso após ouvir do sogro que era uma péssima jornalista.
E o desenvolvimento de Rory não parou ali. Apesar de ser inteligente, ela era extremamente mimada, e isso não muda nem no especial Gilmore Girls: Um Ano para Recordar. Oportunidade que a criadora Amy Sherman-Palladino teve para finalizar o ciclo da série, que poderia ter acabado na sétima temporada, porém por questões contratuais ela foi substituída por David S. Rosenthal, o que gerou um final péssimo para a trama.
Dividido em estações, o especial da Netflix se passa em um momento extraordinário, quando Rory tem 32 anos, exatamente a idade que Lorelai tinha quando a série começa. Podemos matar as saudades de Stars Hollow, e ver de perto como os personagens evoluíram, ou nem tanto.
Diferente do amadurecimento de Paris, já citado anteriormente, Rory que sempre foi considerada única em Stars Hollow se vê desempregada, mas não por falta de oportunidades. Nesse período, a protagonista cuida dos filhos da amiga, que agora coordena uma clínica de fertilização. Apesar disso, ela ainda se encontra imersa em dilemas de auto estima.
Entre os quatro episódios de 90 minutos vemos exatamente como Rory não mudou, ela que poderia ter um futuro brilhante está em um período complicado por se sentir especial demais para o mundo, enquanto Paris permanece persistente e com os pés no chão, algo que falta na vida da protagonista. Os dramas são os mesmos, e as famosas quatro últimas palavras que esperamos tanto tempo ouvir decepcionaram. Era só isso? Acabou? Não há mais nada para ser dito Rory?
Terminar com “Mãe.” “Sim.” “Estou grávida.” foi a ideia que a criadora teve desde o início, antes mesmo do piloto ser gravado. De certa forma as quatro palavras chegaram no momento certo, nove anos depois do final da sétima temporada, quando esperávamos nos deparar com uma Rory mais madura. Mesmo não sendo o que acontece, sabemos que não teria graça ter sido na sétima temporada, essa sendo a mágica do especial.
Um detalhe que não pode ficar de fora é o roteiro. Alexis e Lauren tiveram que fazer aulas para pegar o ritmo acelerado das personagens e soltar todas as referências da cultura popular que eram possíveis. Cada cena é um bingo de referências, e o texto geralmente tinha o dobro de páginas comparado a qualquer outra série com episódios de 40 minutos, levando em média oito dias para ficar pronto. Talvez a demora fosse porque os atores deveriam seguir à risca sem improvisar nenhuma fala.
Falando em bastidores, Lorelai e Rory sempre eram vistas tomando muito café em xícaras e copos gigantes, contudo, curiosamente a atriz Alexis Bledel odiava a bebida e a produção colocava refrigerante para ela. Já Lauren Graham revelou em entrevista ao The Late Show with Stephen Colbert que sempre havia café no seu copo.
Falando em Amy Sherman-Palladino, ela conquistou o público com outra série recentemente. A comédia The Marvelous Mrs. Maisel (A Maravilhosa Sra. Maisel) que estreou em 2017 no streaming Prime Vídeo tem conquistado a crítica e milhões de telespectadores pelo mundo, ganhando diversos Emmys. A série prova mais uma vez que a roteirista domina a arte do entretenimento.
Por fim, Gilmore Girls não tenta ser fiel a realidade, mas sim nos tirar dela. É a série perfeita para desfocar do mundo real e seus problemas e entrar nos dilemas bobos de mãe e filha, e isso talvez seja a isca da série que continua pegando milhares de fãs pelo mundo, mesmo 20 anos depois de ter sido lançada.