Persona Entrevista: Felipe M. Guerra

Diretor comenta sobre a reedição de seu clássico do cinema amador para o Fantaspoa XVII e da realidade dos cineastas independentes no Brasil

Arte do Persona Entrevista. À esquerda, as palavras PERSONA ENTREVISTA estão contínuas em quatro linhas brancas e brancas. O cineasta Felipe M. Guerra está no centro da arte, em preto e branco no fundo vermelho. Ao seu lado, o poster do filme Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado, com FELIPE M GUERRA em preto acima.
Depois de nomes como Lemohang Jeremiah Mosese e Moara Passoni, o Persona Entrevista volta para um bate-papo com o cineasta independente Felipe M. Guerra (Foto: Necrófilos Produções Artísticas/Arte: Jho Brunhara)

Caroline Campos

A 17ª edição do Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, que ocorreu no último mês de abril, rendeu o acesso a muitas obras internacionais até então inéditas no Brasil. Depois da cobertura do Fantaspoa XVII pelo Persona, o quadro de entrevistas do site retorna para conversar com Felipe M. Guerra, o diretor de um dos filmes mais comentados do evento: Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado

No aniversário de 20 anos do longa, Guerra, também jornalista, conta um pouco sobre seu processo de criação e a recepção do público durante o Fantaspoa, que marca a primeira vez que o filme foi disponibilizado online e sem restrições. Simpático, o gaúcho ainda comenta sobre a relação do Cinema com as novas tecnologias e o papel da arte independente. Sentiu saudade do Persona Entrevista? Então, acompanhe abaixo o papo que tivemos com o responsável por um dos maiores mitos do cinema amador.

Felipe Guerra é um homem branco de 41 anos. Ele está no centro da imagem, segurando uma placa como se tivesse sendo preso, em que podemos ler CURTA CIRCUITO 17 EDIÇÃO. Ele usa uma camisa preta e a imagem é preta e branca.
Felipe brinca que o único dinheiro com Cinema que conseguiu na vida foi com a venda de seu filme Deodato Holocaust em Blu-ray na Europa (Foto: Acervo Curta Circuito)

Entrei em Pânico… é fruto de outra era tecnológica. Felipe, com seus 30 anos de carreira e 41 de vida, lembra das dificuldades de se produzir cinema independente no mundo analógico, decorrentes da baixa qualidade de imagem, som e dos processos mirabolantes de edição e montagem de um filme. “Tudo era um pouquinho mais difícil, mas, ao mesmo tempo, mais desafiador. (…) Naquela época, para se gostar de Cinema, tinha que gostar muito”, brinca o cineasta, relembrando das videolocadoras e comparando com a facilidade dos dias de hoje, onde um filme pode ser disponibilizado em diversas plataformas e difundido pelo Brasil. 

Ainda por cima, quando o então presidente Fernando Collor extinguiu a Embrafilme, fazer Cinema virou coisa de rico. Felipe e outros interessados em realizar seus próprios filmes precisavam se virar com o que estava disponível, como a câmera VHS. “Para você querer fazer filme com VHS, você precisava gostar muito de Cinema e não ter dinheiro algum”, conta o gaúcho, que então resolveu juntar os amigos e dar vida às suas obras. Além do VHS, o diretor já filmou em câmeras digitais, semiamadoras e, por enquanto, só falta o 4K. “Nunca consegui ficar rico nem ir para a Globo fazer novela, mas me diverti muito nesses quase 30 anos de produção independente”

A relação entre Felipe Guerra e o Fantaspoa não é de agora. O gaúcho já estreou muitos de seus filmes no Festival e possui obras produzidas pelo Fantaspoa Produções. A amizade rendeu a ideia de reeditar seu longa Canibais & Solidão, que comemora 15 anos em 2021. No entanto, o vigésimo aniversário de Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado falou mais alto. “Eu ofereci para eles e eles ficaram fascinados, já que o Fantaspoa nem existia quando o filme foi lançado em 2001”, comenta Guerra.

Cena do filme Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado. Um assassino segurando um machado olha por dentro de uma porta, na ddireção de um jovem que está mexendo no computador.
Entrei em Pânico… teve que se transformar da sua criação para cá: por conta de direitos autorais, muitas músicas precisaram ser substituídas (Foto: Necrófilos Produções Artísticas)

No mundo pré-internet, Felipe lembra que, para vender suas fitas, era necessário enviá-las por correio. “Eu tive muita sorte. Apesar do filme ter sido feito nessas condições difíceis, a mídia em geral se interessou por ele, tanto pelo título quanto por ter sido feito em uma cidadezinha do interior”. Na época, Carlos Barbosa, localizada no Rio Grande do Sul, contava com cerca de apenas 15 mil habitantes. O filme se tornou uma pauta ambulante, fruto do imaginário popular e, logo, era uma das obras independentes mais conhecidas do Brasil – e menos vistas, já que o público não possuía acesso sem a compra da fita.

Mesmo com a repercussão gigantesca de Entrei em Pânico…, que o custou R$ 250,00, Felipe confidencia que não gostava muito de sua produção. Agora, por conta do carinho da nova geração pela obra após o Fantaspoa XVII, ele aprecia um pouco mais seu terror-comédia gaúcho. “Foi realmente inesperado. Eu jurava que o filme ia ser uma piada de mau-gosto”, zomba o diretor, que se diz emocionado com o burburinho e conta que respondeu resenha por resenha na página do Letterboxd da obra.

Após a reedição do longa de 2001, que ganhou o nome de Redux, muitos minutos do original foram cortados. “O filme original era horrível. (…) Quando eu percebo, o filme tá com 70 minutos já e nem começou a morrer gente. Aí eu acelerei o restante, então nossa, era muito ruim aquilo”, comenta Guerra no meio de risadas, mas afirma que redescobriu sua obra depois desses vinte anos, relembrando cenas que foram retiradas e esquecidas na memória. Para Felipe, sua versão Redux tem um quê de redenção, com um ritmo melhor depois da edição no computador e muita nostalgia em assistir seus amigos e família tão novinhos.

Imagem promocional do filme Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado. O assassino, com uma máscara branca esticada e roupa com capuz preto, está apoiado e segura uma faca com a mão esquerda e a cabeça de um boneco com a mão direita. Ao fundo, as paredes laranjas estampam CARLOS BARBOSA.
O sangue da produção variava entre suco de groselha com Coca-Cola e tinta de carimbo, utilizada sem contar aos atores (Foto: Necrófilo Produções Artísticas)

Depois que surgiu a franquia Pânico nos anos 90, Felipe e seus amigos, acostumados com a violência dos slashers da década anterior, ficaram frustrados com o fato de haver pouco sangue na obra. “Entrei em Pânico… surgiu dessa ideia: vamos brincar com Pânico, mas pegando esse espírito dos slashers dos anos 80”. As referências são muitas, como o próprio vilão abrasileirado Geison, que homenageia Jason Voorhees, e o hilário “Olá, Cinthia” no começo da trama.

Apesar do reconhecimento pela paródia de 2001, Guerra, que tem Robert Rodriguez como guru, é responsável por uma filmografia variada e criativa. Uma de suas estrelas é a avó de 90 anos, Dona Oldina do Monte, que protagoniza o documentário curta-metragem Dona Oldina – A Fernanda Montenegro Trash e Dona Oldina Vai às Compras, curta mais recente do cineasta. Como uma vovó fazedora de tricô foi parar atuando nos filmes trash do neto? Felipe conta que, em 1995, O Quatrilho, de Fábio Barreto, filmou algumas cenas na região onde a família morava, e Dona Oldina acabou conseguindo uma palinha como figurante. 

“Ela já era uma estrela da Globo quando eu comecei a trabalhar com ela, mas foi contaminada por esse vício quando eu comecei a fazer meus próprios filmes”, revela o diretor, com muito afeto pela avó. Dona Oldina sempre comenta que participar das aventuras nas telas a salvou da depressão, depois que o marido, avô de Felipe, morreu. Extremamente carismática na frente de uma câmera, Oldina ganhou uma sobrevida com os filmes e topa tudo pelo Cinema, inclusive possui um papel exclusivo em Entrei em Pânico… parte 2, disponível no YouTube.

Cena do curta Dona Oldina Vai Às Compras. Dona Oldina está no centro da imagem, da região do peito para cima. Ela é uma senhora branca de 90 anos com cabelos na região do ombro, tam´bem brancos. Ela usa um suéter bege e uma blusa gola alta roxa. Ela olha para cima.
Dona Oldina foi apelidada como “A Fernanda Montenegro dos pobres” (Foto: Necrófilos Produções Artísticas)

Analisando a própria filmografia, Felipe M. Guerra conta o processo criativo por trás de Blanket, curta de 2014 com apenas 3 minutos. Ao lado da então namorada, atual esposa, Daniela, o gaúcho filmou sua obra em apenas meia hora no corredor sombrio do hotel em que estava hospedado. “Eu gosto de citar o Blanket como um exemplo de que não há mais desculpas para você não fazer filme. (…) Se não ficar bom, você não gastou dinheiro”, reforça o diretor, incentivando, sempre, o Cinema feito em casa – ao final de Entrei em Pânico…, a mensagem de que “fazer os próprios filmes é divertido” aparece na tela logo antes dos créditos.

Infelizmente, a produção de filmes de terror no Brasil é escassa e, muitas vezes, mal recebida. Com um público difícil, Felipe afirma que prefere fazer a mescla com a comédia, em um terror mais satírico a fim de atingir uma parcela maior. “Eu sempre quis chegar num público maior, não só fãs de terror, mas filmes que minha mãe pudesse assistir, por exemplo”. O objetivo, na visão do diretor, é conseguir se divertir, mesmo com um susto ou outro, já que o espectador brasileiro ainda possui muito preconceito com o próprio Cinema no geral. “Tem público que acha muito esquisito ver gente falar português em filme de terror, e esse argumento é tolice, porque depois essa pessoa vai assistir o estrangeiro dublado”, rebate Guerra.

A situação ainda se agrava pela dificuldade de produzir e conseguir retorno pelas obras. Para o diretor, o principal problema hoje é como monetizar as produções, já que, com o fim iminente da mídia física, é mais complicado gerar algum dinheiro de filmes autofinanciados, até porque não se consegue colocá-los em plataformas de streaming. “O amor ao Cinema vai até certo ponto, mas, depois que você gastou um monte do seu dinheiro nisso, já não dá mais”, lamenta. Felipe vê muitos amigos e realizadores independentes desistindo da carreira, pois, além de não conseguirem incentivo dos raros editais que são disponibilizados, também não conseguem vender as obras. “Uma hora você tem que pagar suas contas”.

Cena do curta Blanket. No fim de um corredor de paredes brancas, vemos uma figura em pé com um lençol branco cobrindo o corpo todo, parado de frente ao corredor. Nas paredes, vemos extintores de incêndio e kits de segurança.
Felipe Guerra pagava seus filmes com o salário no Jornalismo, e hoje faz freelas para site internacionais (Foto: Necrófilos Produções Artísticas)

Com tristeza, Felipe lamenta pelo tratamento indiferente que José Mojica Marins, o Zé do Caixão, recebeu durante a vida. O Rei do Terror no Brasil, que ganhava dinheiro em bingos, só passou a ser reconhecido quando foi notado pelo estrangeiro. “As pessoas lembravam dele como uma piada. Ele se tornou uma figura folclórica, mesmo sendo o cara que introduziu o terror no Brasil. Um pioneiro”, afirma o cineasta, retomando as obras que passaram pelo Fantaspoa XVII, como O Cemitério das Almas Perdidas, de Rodrigo Aragão, e Dois Minutos Além do Infinito, do japonês Junta Yamaguchi. 

Finalizando a conversa, Felipe M. Guerra enfatiza que o papel do cinema independente é contar as histórias ignoradas pelo mainstream, pelo Oscar e pelos cinemas de shopping. “Eu fico me perguntando ‘como é que esse filme não estourou?’, mas ele não chega a um público maior”, comenta o diretor, afirmando que gosta e acompanha produções hollywoodianas também, mas só encontra a originalidade no cinema independente. “Hoje, com a internet, o céu é o limite. Você tem um mundo de coisas para ver”

Em decorrência do sucesso de público, Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado ficou disponível por mais uma semana após o encerramento do Fantaspoa XVII.

 

Quais são seus três filmes de terror favoritos?

Felipe: “Nossa, que pergunta difícil! (risos) Então vamos fazer assim, três filmes que eu gosto muito, tô sempre revendo e acho que todo ser humano deveria ver. O filme que me fez gostar de cinema de horror: Um Lobisomem Americano em Londres [1981]. É o modelo que eu sigo para meus filmes, ele é super terror quando tem que ser e é engraçado quando não precisa ser assustador. (…) Foi o primeiro filme de horror que eu vi quando era criança e me marcou muito. Depois, O Massacre da Serra Elétrica [1974], porque provavelmente foi uma das vezes que o cinema foi mais sujo, mais bárbaro, violento. No filme original, parece tudo verdade, que as pessoas tão morrendo mesmo. Parece um documentário. (…) E, para mim, o filme de terror perfeito O Enigma de Outro Mundo [1982], do John Carpenter. É um filme sobre isolamento, paranóia e tá super atual. Os efeitos, todos práticos, são muito bons, você assiste hoje e não diz que é um filme de 82. Esses três [filmes] são obrigatórios”. 

 

E três cineastas?

Felipe: “Os meus três preferidos de todos os tempos são: [Quentin] Tarantino, gosto muito da maneira como ele resgata esses filmes antigos e faz muita gente mais novinha procurar sobre eles. Acho um serviço ao Cinema isso que ele faz (…); John Landis, porque é um cara que, pra mim, melhor soube dosar essa coisa do horror e da comédia. Pode procurar tudo dele porque ele é um diretor que só tem filme bom; e o terceiro, eu até diria que é meu preferido, é o Jesús Franco, um diretor alternativo, e ele fez mais de 200 filmes na vida dele. Um cara que fazia cinco, seis filmes por ano. Tem muita coisa péssima e muita coisa genial. Gosto tanto que é o nome do nosso gato. (risos) Ele me inspirou muito. Gosto dessa coisa de ser criativo e reciclar seu próprio material”. 

 

Quais são seus projetos futuros?

Felipe: “Gostei muito da experiência, então quero reeditar o Canibais & Solidão. Eu tenho documentários para editar, coisa que eu filmei no Fantaspoa. Um documentário sobre o Roger Corman, que eu mencionei. Também um documentário sobre mulheres realizadoras do cinema de horror, que a gente filmou em quatro anos a fio, com todas as mulheres que vinham ao Fantaspoa, a gente entrevistava. Então tem muito material, e estamos até pensando em transformar em uma série. Mas, filmar filmes novos eu não tenho planos pra tão cedo, por conta das dificuldades, envolve dinheiro, meus atores familiares e amigos estão desistindo dessa vida, porque perceberam que não vão ficar famosos. Mas uma coisa que eu queria fazer e, quem sabe, faça, é Entrei em Pânico parte 3. Seria um fechamento em ciclo, o primeiro foi filmado em vídeo, o segundo em vídeo digital e o terceiro eu queria fazer em full HD, porque ia mostrar todas as etapas do cinema independente brasileiro. Eu realmente queria fazer pela piada (…) Não sei se vou conseguir fazer, mas seria divertido”.

 

Para acessar as obras de Felipe M. Guerra, clique aqui.

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