Gabriel Oliveira F. Arruda
Depois de escrever e dirigir Star Wars: Os Últimos Jedi em 2017, um dos grandes sucessos da década, Rian Johnson retorna com um trabalho autoral que o destaca como um dos melhores cineastas da atualidade. Além disso, o americano prova sua habilidade em preservar a tradição sem ignorar a inovação. Entre Facas e Segredos conta com um elenco de peso, um mistério familiar, e uma abordagem singular aos dilemas que assombram o gênero detetivesco.
Harlan Thrombey se suicidou. O patriarca dos Thrombeys (Christopher Plummer) fez fortuna escrevendo romances de mistério, acumulando mansão, uma herança considerável e uma família desesperada por obter até mesmo parte dessa quantia. Mas é apenas quando o renomado detetive Benoit Blanc (Daniel Craig) chega no casarão, começa a entrevistar os membros do clã e a fazer perguntas incômodas, que a dúvida surge: será que Harlan realmente cometeu suicídio?
A família Thrombey (interpretada por nomes como Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Toni Collette, Don Johnson, Katherine Langford e Chris Evans) é composta, inicialmente, por pessoas ricas e egoístas. Nenhuma dela, no entanto, tem motivo aparente para cometer homicídio. As verdadeiras dúvidas e suposições surgem quando Blanc desenrola uma trama de mentiras e inverdades ao lado do Tenente Elliott (LaKeith Stanfield) e da cuidadora de Harlan, Marta (Ana de Armas).
Rian Johnson começa a contar sua história da mesma maneira com que outro artista começaria uma pintura: primeiro, ele nos dá um esboço inicial. Nele, a audiência apreende o sentido mais vago da cena, tomando as coisas ao pé da letra e conhecendo cada personagem através de arquétipos reconhecíveis facilmente. Após isso, ele completa o contorno, as formas se solidificam e você agora vê a cena claramente. Todos os personagens são colocados em suas posições no tabuleiro da morte do milionário, e o quadro parece se revelar.
E é exatamente nesse ponto que o gênio de Johnson se mostra, tanto no roteiro quanto na direção: ele faz com que a audiência veja as cores. Ao completar tão detalhadamente o quadro com traços cirúrgicos e experientes, ele nos faz esquecer que cores deveriam preencher a cena antes de apreciarmos o valor completo dela. E depois que nós finalmente observamos o quadro completo, a pintura se revela e o artista a vira de cabeça para baixo, revelando o significado oculto que estava lá o tempo todo.
Sob muitos aspectos, Entre Facas e Segredos é um clássico “whodunnit” (“quem foi que fez?”, em tradução livre), gênero no qual acompanhamos um detetive, ou simplesmente alguém disposto a solucionar um caso. Conhecemos também um elenco de personagens, geralmente estranhas o suficiente para que possamos suspeitar de cada uma delas, sem necessariamente ter provas que apontem para a sua culpa. É um gênero influenciado principalmente por autores de mistério como Agatha Christie e Sir Arthur Conan Doyle.
Porém, é com a subversão de aspectos elementares, que o diretor e roteirista cria o seu próprio microcosmo de mistério e tensão. Há um ponto na trama em que a questão deixa de ser “quem foi que fez?” e passa a ser “será que vão pegar quem fez”, e isso muda tudo. A trama nunca se distancia de suas personagens, na visão de seu protagonista detetive, muito pelo contrário: o longa é uma observação clara de todos os jogadores no tabuleiro e de todas as peças que eles movem e, quando é para te enganar, consegue fazê-lo quase que honestamente. Se é que isso faz sentido.
O impressionante elenco também tem muito com o que trabalhar, dando a cada um dos Thrombeys uma caracterização impressionante e nuances a suas personagens. Claro, há sempre personagens que conseguem ser mais explorados do que outros, tanto tematicamente quanto praticamente. Mas a habilidade do diretor de dosar ambas as partes é essencial para o clima que o longa quer passar.
O detetive Blanc (interpretado por Craig com um sotaque sulista que beira ao ridículo) é uma figura de equilíbrio e racionalidade no decorrer da trama, agindo com cautela e tranquilidade frente a uma família cada vez mais enfurecida por sua investigação. Ele não possui a mesma energia maníaca do Sherlock Holmes de Benedict Cumberbatch, mas sim um certo entusiasmo quase infantil ao prosseguir no caso. Em momentos cruciais, a intensidade de Craig no personagem chega a ser assustadora.
Chris Evans, no papel da ovelha negra do grupo, traz uma energia caótica e aparente ao elenco. Dispensa maquinações e mentiras para se fazer entendido, zombando abertamente dos investigadores e sendo franco quanto a sua relação com Harlan. Ana de Armas consegue se impor no meio de um elenco de estrelas, contrapondo a natureza honesta de Marta à ganância da família, disposta a fazer qualquer coisa por aqueles que ama.
A excentricidade dos Thrombeys e do detetive nunca fica no caminho da moral do texto de Rian Johnson, que se expressa através do mistério da morte de Harlan e de sua resolução.
O seu trabalho de longa data com Steve Yedlin (responsável pela fotografia de Os Últimos Jedi, Looper e A Ponta de um Crime, estreia de Johnson) continua aqui. O diretor de fotografia é experiente ao justapor os personagens aos ambientes, num gênero em que todo espaço precisa ser interessante o suficiente para que seja analisado em busca de pistas, tanto pelas personagens que o habitam, quanto pela audiência.
Múltiplas visitas ao espaço capturado por Yedlin irão revelar novos aspectos e detalhes do longa, reformando a trama e reunindo seus aspectos técnicos e temáticos em uma visão singular.
Johnson já expressou interesse em continuar fazendo filmes sobre o personagem de Blanc e, na mão de qualquer outro diretor, eu ficaria preocupado de que o que tornou Entre Facas e Segredos tão especial fosse se diluir em uma franquia limitada em tentar refazer o seu sucesso. Mas se tem uma coisa que eu confio em Rian Johnson para fazer, é me surpreender.