Nathan Nunes
Quando se trata de Durval Discos, existem dois tipos de público: aquele que começa a assistir o filme esperando uma coisa e o que termina tendo recebido outra. É fato que a vivência é comum para qualquer obra, mas, no caso específico desta em questão, o aspecto é muito mais chamativo. A experiência é tão marcante que a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo programou uma exibição do longa para o dia 28 de outubro, como parte da seção Apresentação Especial e no exato dia da comemoração dos 20 anos de aniversário da produção.
O motivo por trás de tamanho entusiasmo? Bom, basta olhar para o primeiro filme de Anna Muylaert exatamente como os discos de vinil que o título evoca: todo LP possui o seu lado A e B, e é comum que eles sejam completamente diferentes um do outro. Aqui, acompanhamos Durval (Ary França) e sua mãe Carmita (a saudosa Etty Fraser), que dividem sua casa com a loja de mesmo nome da obra. Precisando de uma pessoa para cuidar dos afazeres domésticos, os dois contratam Célia (Letícia Sabatella), que desaparece depois de sua primeira diária, deixando a pequena Kiki (Isabela Guasco) sob seus cuidados.
Os talentos de Muylaert já se mostram notáveis nos minutos iniciais, nos quais sua câmera passeia em plano-sequência pelas ruas do centro de São Paulo, servindo tanto para nos estabelecer dentro daquele microcosmo, como para introduzir os créditos dos profissionais envolvidos. Depois desse deleite visual, ela se destaca de maneira mais sutil, com a naturalidade que compõe o cotidiano de Durval, Carmita e Kiki. Ao som de clássicos underground da música brasileira, somos colocados em uma zona de conforto prazerosa, da qual não esperamos ser retirados de forma tão brusca quando o roteiro, também de autoria da diretora, revela que a menina, na verdade, foi sequestrada por Célia.
Nesse momento, temos a virada para o lado B, no qual Muylaert aproveita para nos impressionar ainda mais. A câmera, sob a direção de fotografia de Jacob Solitrenick, toma rumos de maior impacto visual, como no uso do steady à lá O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, e em uma composição surrealista envolvendo as três personagens principais, um cadáver, um cavalo e sangue nas paredes rosas de um quarto. Esse segundo exemplo sintetiza bem a caoticidade e o absurdo do roteiro a partir dessa mudança na narrativa.
Contudo, é evidente que não só Muylaert brilha aqui, pois temos vários outros elementos de excelência. Tecnicamente, destaca-se o design de produção de Ana Maria Abreu, que é ressignificado de modo notável, quando a loja de discos deixa de ser um local acolhedor e se torna quase uma prisão, com suas paredes revestidas de grades e pouca entrada de luz. Chama atenção também a conexão da trilha sonora com a situação dos personagens na narrativa, como por exemplo em Mestre Jonas, do antigo trio Sá, Rodrix e Guarabyra. Na música, o sujeito vive “dentro de uma baleia, desde que completou a maioridade e diz que mora lá por vontade própria”. Não é difícil traçar paralelos com Durval, cuja baleia seria a casa da mãe, da qual não sai, mesmo já tendo idade suficiente para tal atitude.
Nesse sentido, há de se falar sobre o elenco marcante do filme, que compõe perfeitamente seus personagens. Ary França se encaixa direitinho na figura do metaleiro folgado e sem maiores aspirações na vida, enquanto Etty Fraser brilha na construção de uma senhora que, aos poucos, passa de uma pessoa doce e inofensiva a uma antagonista imprevisível e perigosa. Além dos dois, temos uma ótima performance coadjuvante de Marisa Orth como a fuxiqueira Elisabet, que não exita em todos os dias escapar por alguns minutos de seu enfadonho trabalho em uma sorveteria ao lado para fumar um cigarro na companhia de Durval e seus discos. Também não passa batida a participação especial de Rita Lee como a excêntrica Tia Julieta (basicamente a Rita Lee em pessoa, diga-se de passagem).
No final das contas, conclui-se que a celebração dos 20 anos de Durval Discos é muitíssimo bem vinda, tendo em vista seu excelente legado. Além de continuar conquistando novos fãs até hoje, o filme solidificou o nome de Muylaert como uma das diretoras rainhas do nosso Cinema nacional, ao lado de outros nomes de peso como Laís Bodanzky (Como Nossos Pais, Bicho de Sete Cabeças) e Suzana Amaral (A Hora da Estrela, Uma Vida em Segredo). Sua visão sagaz de que até mesmo o cotidiano mais monótono pode se tornar vitrine para experiências de maior profundidade perdurou durante toda sua carreira, indo do famoso Que Horas Ela Volta? até o recente documentário Alvorada.
A linha de pensamento da cineasta aumenta ainda mais o impacto do longa, principalmente quando olhamos para o seu ano de lançamento. Em um 2002 que marcou nossa Sétima Arte com obras seminais como Cidade de Deus e Edifício Master, uma produção aparentemente simples sobre uma mãe e seu filho vivendo em uma loja de discos conseguiu se destacar, tal qual a epopeia de crime de Meirelles ou o experimento social de Coutinho. Isso diz muito, pois às vezes as melhores histórias vêm de onde menos imaginamos.