Aviso: Lisan al Gaib profetiza que haverá spoilers no texto a seguir
Íris Ítalo Marquezini e Nathan Sampaio
Um dos exemplos mais utilizados em escolas para representar o conceito de uma história épica é A Odisseia, de Homero. A trama de voltar para casa, ficar distante da família e reclamar dos sacrifícios que são de heróis por direito fundou muito do que se entende pelo ocidente hoje. Acontece que não só de histórias monumentais viviam os gregos. As tragédias, compostas por pessoas paralisadas pelas teias do destino e de erros fatais irreparáveis, colocavam a audiência na linha tênue entre entretenimento e choque pelo que era representado nos palcos dos teatros.
Ésquilo, em A Casa de Atreus, demonstra um exemplo de como determinadas crenças, ganância e crueldade podem condenar gerações de uma família a sofrer um ciclo de violência interminável. Duna: Parte 2 continua a mostrar a tragédia que acomete essa mesma linhagem dezenas de milhares de anos depois. A graça do filme é o diretor Denis Villeneuve somar o épico e o trágico igualmente, de uma forma que, como alguns diriam anos atrás, seria impossível. Para uma história com tanto peso na religião, Duna: Parte 2 faz a audiência acreditar que é possível ir ao cinema para presenciar um milagre.
A sequência começa imediatamente após o final anticlimático do primeiro filme: com Paul Atreides (Timothée Chalamet) e Lady Jessica (Rebecca Ferguson) após terem sido atacados. Depostos pela Casa Harkonnen e deixados para morrer no deserto, a dupla se adapta à vivência com os fremen, o povo nativo do planeta Arrakis. Desde o início, a relação entre esses personagens e a cultura de um mundo diferente é cercada de desconfianças e manipulações muito bem construídas. É a partir de diálogos bastante diretos que as maquinações pensadas por cada família ficam claras no universo gigante fundado por Frank Herbert em 1965.
Duna: Parte 2, apesar de ser uma adaptação bastante fiel ao livro, decide focar principalmente em um único tema. A ecologia do planeta é deixada de lado no roteiro, para se debruçar totalmente no tópico do fanatismo religioso em um contexto colonialista. A história avança fazendo com que a audiência se impressione com a escala grandiosa dos eventos, mas tudo é feito para deixar uma ‘pulga atrás da orelha’ de quem assiste.
Desde o primeiro longa, apresentam-se uma grande variedade de personagens – centrais e coadjuvantes – que não servem apenas para compor cena, pois todos se relacionam com algum aspecto importante do universo criado por Herbert. Porém, o filme de 2021 falha em desenvolver toda essa gama de indivíduos, tornando-os desinteressantes e, em alguns casos, sem propósitos narrativos, o que prejudica o envolvimento do público. Felizmente, o roteiro de Denis Villeneuve e Jon Spaihts amadureceu com o tempo – algo que trouxe arcos melhor estruturados, atrelados a personalidades únicas e marcantes.
Paul Atreides é o personagem que apresenta a melhor evolução, não só entre os filmes, mas também dentro desta sequência. O protagonista começa humilde, empático e concessivo, o que contrasta com a postura mais autoritária e messiânica que surge ao longo da narrativa. E como se não bastasse só o texto bem escrito, a performance de Timothée Chalamet é genial, captando todas as nuances da transformação de Atreides para Muad’dib. Além disso, o ator faz com que as suas falas sejam impactantes, mesmo aquelas que estão em um idioma fictício.
Um dos melhores e mais importantes arcos dentro de Dune: Part Two (no original) é o de Lady Jessica Atreides, que se aprofunda tanto na mitologia do povo do deserto – os fremen – quanto nas intenções políticas da ordem das Bene Gesserit. A personagem tem relação direta com o tema principal da trama: a religião e como ela pode ser um instrumento muito poderoso de manipulação de massas. Jessica, mãe de Paul Atreides, entende essa questão e é exatamente por isso que decide usá-la ao seu favor, mesmo que isso vá de encontro com as vontades do seu filho. Nesse papel, Rebecca Ferguson entrega uma performance complexa, pesada, que flerta com a vilania, mas que nunca deixa de ser cativante.
Villeneuve e Spaihts souberam muito bem adaptar o material original por não se prenderem apenas em transpor o livro para a tela, mas se desafiarem a alterar acontecimentos e personagens em prol de fortalecer sua narrativa. Lady Jessica, no material base, critica constantemente o caminho messiânico e violento tomado por Paul; enquanto em Duna: Parte 2, a Reverenda Madre está bem confortável com a ideia de manipular os mais fracos e vulneráveis.
No romance de Frank Herbert, Chani (Zendaya) é passiva e se limita em aceitar as decisões do protagonista, o que a torna tanto amante como seguidora do Lisan al Gaib. Por outro lado, a fremen aparece para a audiência nas duas partes da adaptação como uma bússola moral. O longa a transforma em uma descrente das profecias, e essa convicção, unida a sua personalidade segura de si, criam pontos de conflito entre ela e Paul Atreides. Tal decisão torna a interpretação de Zendaya mais interessante e ajuda a engajar o espectador.
Os antagonistas apresentam um desenvolvimento mais fraco se comparado aos protagonistas, já que todos os Harkonnen compartilham de traços de personalidade similares, como violência, impiedade e sede de poder. O que os torna únicos é o visual absurdo empregado em cada um deles: se não fosse a estética requintada alinhada à interpretação imponente de Stellan Skarsgård, como Barão Vladimir, e Austin Butler, como Feyd-Rautha, os personagens poderiam se tornar genéricos, mas há pinceladas de individualidade o suficiente que os tornam ameaçadores.
As demais interpretações estão alinhadas com os propósitos da narrativa. Stilgar Ben Fifrawi (Javier Bardem) personifica os fremen que ainda acreditam no Messias cegamente, o que faz com que ele transite entre a figura cômica e aquele irracional pela própria fé incondicional. Já a Princesa Irulan Corrino (Florence Pugh), serve para vislumbrarmos as consequências políticas do primeiro filme, além de atiçar o público para a sequência. As performances mais fracas ficam por conta de Christopher Walken, como Imperador Shaddam IV, e Josh Brolin, que retorna como Gurney Halleck, por causa do menor tempo de tela e pela desconexão com a trama.
A conclusão da trama também melhora no novo capítulo, pois como o primeiro longa deixou um gancho para a sequência, havia a sensação da história parecer incompleta e sem final. Já a segunda parte parece mais inteira, pois possui uma linha narrativa melhor desenvolvida – com início, meio e fim bem delimitados e satisfatórios – tirando o gosto amargo deixado pela experiência anterior.
Comparado com o primeiro filme, Duna: Parte 2 apresenta um ritmo muito melhor. O longa de 2021 adapta um trecho introdutório do livro original, e apresenta conceitos básicos do universo – o que faz a trama demorar, tornando a narrativa insossa. Já a sequência se beneficia da transposição do clímax da publicação sci-fi para as telonas: a direção de Denis Villeneuve consegue aproveitar bem isso, e faz a história ser impressionante, trágica, intensa, angustiante e, acima de tudo, deslumbrante
Os pontos positivos da Parte 1 se mantiveram neste novo capítulo. O design de produção feito por Patrice Vermette – vencedor do Oscar por Duna em 2022 – continua impecável e encantadora. Nesta segunda parte, mergulhamos ainda mais na cultura fremen, o que permitiu ao diretor de Arte mergulhar ainda mais nas referências de culturas do Oriente Médio somadas às identidades visuais de civilizações Incas e Astecas. A confluência de referenciais foi essencial para criar uma personalidade única e reconhecível ao universo de Herbert.
Um dos momentos mais deslumbrantes de Duna: Parte 2 é a sequência em Giedi Prime, planeta natal dos Harkonnen, que, por decisões estéticas de Villeneuve, foi toda feita em preto e branco, o que remete ao caráter colonizador da dinastia. Dessa forma, Vermette se inspirou em visuais plásticos e oleosos, que lembram o petróleo, e o resultado é um cenário opressor, repulsivo e nojento, características que se encaixam perfeitamente no grupo de antagonistas.
A cinematografia também possui muitos méritos por essa sequência, pois o diretor de Fotografia, Greig Fraser – que retorna à sequência após ter ganhado o Oscar pelo primeiro capítulo –, se desafia ainda mais neste longa. Para passar a sensação do sol negro que ilumina Giedi Prime, usaram-se câmeras infravermelhas e dessaturação, o que proporcionou às cenas um tom mais natural e opressivo ao mesmo tempo, ajudando a diferenciar a ecologia de cada planeta.
Por mais que haja muitos elementos fantasiosos em cena, Fraser e Denis Villeneuve buscaram manter um viés realista nas filmagens e enquadramentos. Todo o segmento de Paul montado pela primeira vez no verme foi inspirado em vídeos de pessoas mergulhando e enfrentando vendavais, e o referencial mais próximo da realidade junto de closes mais intensos faz com que o espectador se sinta na pele de Muad’Dib.
A direção de Villeneuve do segundo capítulo consegue entregar cenas de ação ainda mais empolgantes que o primeiro, dando o tom épico que Duna merecia. A batalha final é grandiosa e espetacular, e é um deleite para quem se permitiu imergir naquele mundo. O deserto parece mais vivo, e o diretor se inspira em Lawrence da Arábia (1962) para filmar e transformar aquele cenário em um personagem vivo e atuante na trama, algo perceptível durante toda a projeção, principalmente nas interações entre os fremen e Arrakis, que parecem pertencer a uma mesma tribo.
O único ponto negativo da cinematografia, também presente na Parte 1, é que a sensação de calor do deserto nunca é transmitida para o espectador. Jamais vemos Paul Atreides, Lady Jessica, Stigar ou qualquer soldado Harkonnen sofrer com o sol. Ter essa percepção auxiliaria na construção do mundo, pois os fremen pareceriam mais ameaçadores por viver naquelas condições, além de demonstrar ao público como aquela terra é inóspita. Isso é algo que pode ser melhor visto em outros filmes, como em Mad Max: Estrada da Fúria (2015).
Hans Zimmer retorna para a trilha sonora da sequência, reutilizando muito do primeiro filme, mas sem deixar de expandir o que já foi feito. As músicas aqui servem não só para demonstrar a grandeza e o aspecto único da história, mas também para dar um toque funesto às consequências dos atos dos protagonistas. Reconhecer algumas melodias não incomoda, pois se tem a experiência de ver Duna criar uma identidade sonora própria, bem distante das orquestras sinfônicas europeias que Zimmer conseguiu, com sucesso, se afastar.
As músicas Water of Life e Worm Ride são semelhantes a Gom Jabbar e Ripples in the Sand do primeiro filme, mas possuem diferenças cruciais. Uma das maiores novidades é o ritmo completamente frenético das composições utilizadas pelas cenas de ação, em que o punk da juventude de Hans Zimmer é abraçado, como na trilha Harvester Attack. A brilhante Loire Cotler retorna para fazer o já icônico vocal gutural e, ao mesmo tempo, alienígena para as novas faixas.
A trilha sonora aparece em Duna: Parte 2 para humanizar os sentimentos dos personagens. O primeiro filme falha em não apresentar esse lado emocional e utiliza as faixas principalmente para ambientar o planeta Arrakis. Já a sequência se beneficia muito da soundtrack, que coloca as famílias e os povos apresentados sob a luz de uma série de espectros emotivos.
O maior destaque fica para a belíssima A Time of Quiet Between Storms, utilizada como rima sonora para o romance entre Chani e Paul. A música foi composta por Zimmer com o intuito de representar o conceito de amor – e é possível dizer que o compositor conseguiu. A trilha complementa, por meio do som da flauta duduk, as belezas do cenário desértico do planeta Arrakis, além da relação ingênua e inocente entre os personagens naquele cenário hostil.
A recontextualização da mesma melodia no final do filme, com Kiss the Ring, só reitera as tristes mudanças sofridas por Chani e Paul até o desfecho da história. É possível ouvir sons ao fundo que lembram um martelador, mas se tratam de um coração batendo. A principal impressão que a produção deixa é justamente a de que a direção de Denis Villeneuve finalmente encontrou um caminho que faça a audiência se importar de vez e se maravilhar com o que é apresentado.
Mesmo assim, Hans Zimmer não rouba o espaço de Richard King, o editor de som de Duna: Parte 2. Os sons de Arrakis são tão bem inseridos na trama que fica fácil esquecer, por alguns segundos, que estamos em 2024 e não a 10 mil anos no futuro. Essa impressão aparece seja pelo barulho das usinas colheitadeiras operando e explodindo, ou pelo rugido jurássico do shai-hulud para os personagens.
Um dos melhores usos de som na narrativa é a característica quase fantasmagórica da Voz. Enquanto no primeiro filme vemos apenas breves momentos do uso da habilidade das Bene Gesserit de controlar a mente das pessoas, a Parte 2 possibilita ver muitas aplicações criativas desse método. Vale menção tanto ao uso dela pela Lady Jessica quanto pelas breves aparições com toque femme fatale de Lady Fenring, interpretada por Léa Seydoux.
Ainda assim, as combinações sonoras não param apenas nas características alienígenas e futurísticas interagindo de forma plausível com a areia. A mistura entre a cinematografia de uma epopeia e o som de outro planeta nos ajuda a entender o número chocante de seguidores que Paul Atreides conseguia conforme o avançar da história. Ouvir o puxar coletivo das centenas de milhares de dagacrises e sussurros que evoluem para gritos de guerra fiéis ao Lisan al Gaib é uma experiência inesquecível para os ouvidos de qualquer um.
O saldo geral da segunda parte inspirada no clássico de Frank Herbert é de expansão, tanto do primeiro filme quanto do próprio livro original, embora muito da obra fique de fora. Além do maior destaque dado para as Casas Harkonnen e Corrino, e para o universo que cerca essas famílias, em comparação ao longa de 2021, Duna: Parte 2 aprofunda a cultura dos fremen, fazendo uma distinção entre os povos do norte e do sul. Essa decisão é acertada, pois demonstra as diferenças de ideias entre as pessoas daquele povo.
A melhor decisão da adaptação de Denis Villeneuve é justamente mostrar, sem rodeios para a audiência, o quanto a história proposta é subversiva. Embora Duna tenha muitos arquétipos de histórias de ficção científica – como um herói clássico super poderoso e um povo nativo para supostamente ser salvo –, é a partir da crítica sobre esses tropos narrativos, somada a um olhar questionador à religião e ao colonialismo, que a obra original se tornou clássica.
Villeneuve claramente não quis correr o risco da audiência não entender essa mensagem sobre o perigo de figuras messiânicas, mesmo que não pudesse escapar de uma estética techno-oriental presente desde as raízes da proposta elaborada por Herbert. Nessa perspectiva, são poucos os personagens com ascendência árabe presentes com destaque nos acontecimentos, mesmo que palavras como Lisan al Gaib e Mahdi sejam repetidas à exaustão, tornando-se até fontes para incontáveis memes.
Por mais que os fremen não sejam um povo necessariamente árabe na obra original, uma maior representatividade à frente e atrás das câmeras seria mais benéfica para Duna. A resistência em não deixar a humanidade se extinguir é um dos temas principais do livro Imperador-Deus de Duna e da saga inteira em geral. Nesse sentido, focar em narrativas de um povo da vida real que sobrevive – apesar de todas as circunstâncias –, em não deixar a própria cultura morrer, faria todo o sentido dentro da lógica do universo proposto.
A segunda parte da epopeia de Denis Villeneuve supera o antecessor e abre portas para uma sequência que conclua a jornada de todos essesP personagens, bem como o fechamento do tema sobre as figuras messiânicas. O romance escrito por Frank Herbert inspirou centenas de histórias de ficção científica e de fantasia, e Duna: Parte 2 promete influenciar muitas obras que ainda virão. A franquia está alcançando o imaginário popular através de temas relevantes, um universo muito bem estruturado e um elenco marcante. A soma de todos esses fatores resulta em uma aventura de outra galáxia, que torna a experiência de ir ao cinema inesquecivelmente épica.