Gabriel Oliveira F. Arruda
Em 2012, às vésperas do fim da sétima geração de consoles, um pequeno jogo de ação e furtividade em primeira pessoa foi lançado no dia 9 de outubro com o curto e simples nome “Dishonored”. O videogame foi disponibilizado inicialmente para PlayStation 3, Xbox 360 e PC, e a Crítica foi rápida em apontar suas semelhanças com Thief e Deus Ex, franquias famosas por formar as bases do gênero que hoje conhecemos como “immersive sims” (simuladores imersivos, em tradução livre), principalmente pela presença de Harvey Smith, diretor criativo de Dishonored e um dos designers do Deus Ex original. Desenvolvido pela Arkane Studios e publicado pela Bethesda Softworks (Fallout, The Elder Scrolls), o jogo angariou uma onda de resenhas positivas e se tornou o maior lançamento original do ano.
Nele, jogamos com Corvo Attano, Lorde Protetor do Império das Ilhas e guarda-costas pessoal da Imperatriz Jessamine Kaldwin (April Stewart) que presencia o momento de sua morte nas mãos de assassinos sobrenaturais. Sua filha e herdeira do trono, Emily (Chloë Grace Moretz), é sequestrada e Corvo, acusado de ser o autor dos crimes, é jogado na prisão por ordem do recém-nomeado Lorde Regente (Kristoffer Tabori).
Após escapar com a ajuda de um grupo de lealistas, o ex-Lorde faz um pacto com um ser misterioso conhecido apenas como “O Estranho” (Billy Lush), que lhe concede as mesmas habilidades sobrenaturais dos assassinos de sua monarca para auxiliá-lo na busca pela jovem Emily. O enredo vingativo de Dishonored transcorre na sombria metrópole suja e nebulosa de Dunwall, capital do Império, uma espécie de versão steampunk do Império Britânico movida por uma nova era de tecnologias possibilitada pelas propriedades do óleo de baleias e ameaçada por uma terrível praga transmitida por ratos.
A narrativa de Dishonored pode, às vezes, parecer ser seu aspecto mais fraco. Corvo é um protagonista sem voz e quase sem reação (todos nós grunhimos levemente ao sermos baleados, não é mesmo?), e o elenco secundário, apesar de contar com vozes estelares, não introduz muitos personagens dignos de nota. A silenciosa trama é estruturada ao longo de missões e pessoas que Corvo têm de eliminar para desvendar a conspiração por trás da morte da Imperatriz. Cada fase tem segredos próprios, assim como maneiras especiais de neutralizar os seus alvos, de modo que é possível passar pelo jogo inteiro sem ferir nem mesmo um rato.
No entanto, a verdadeira história de Dishonored é justamente a que acontece ao longo de cada uma dessas missões, nos níveis extremamente detalhados das variadas áreas da cidade. A Arkane coloca o jogador como protagonista dessa história, contada não por diálogos, mas por ações. Os poderes místicos de Corvo permitem duas coisas: que ele atravesse ruas com discrição e silêncio, mas também que se torne um tipo de “estranho”, semelhante à figura que os lhe concede. Assim, passamos grande parte do tempo apenas observando o que acontece, separados de Dunwall como se por um véu.
Quando de fato escolhemos agir, essas ações carregam impacto. A praga que se alastra sobre a capital é uma ameaça sempre presente nos lugares mais pobres, e a quantidade de corpos que o jogador deixa em seu rastro altera os números de roedores que encontramos. Apesar de ainda cair em um final binário caracterizado como “bom” ou “ruim”, as escolhas de Dishonored são feitas no calor do momento, e a atitude geral para com o mundo ao redor é o que dita o ritmo da trama e o quão imerso você estará nela.
As ferramentas à nossa disposição são variadas e específicas. Corvo é habilidoso com uma espada, mas sua maior arma é a versatilidade: a escolha não é entre “ser violento” ou “ser silencioso”, mas sim em como executar suas próprias ideias e os caminhos que a produção lhe oferece para exercitar seu arsenal de habilidades. Apesar de contar com marcadores indicando o destino a ser alcançado, há uma liberdade intrínseca na maneira que o jogo te direciona pelos capítulos da trama e abre espaço para que pequenas narrativas de cada nível florescerem.
Aqui, o design da cidade brilha ao se distanciar das fantasias medievais com que a Arkane estava acostumada a trabalhar, como Arx Fatalis (2002) e Dark Messiah of Might and Magic (2006), construindo uma estética vitoriana pautada no abismo socioeconômico que separa as classes de Dunwall. Com o motor gráfico Unreal Engine 3, a direção de arte consegue criar um estilo próprio próximo das artes conceituais, sem sacrificar identidade por realismo. Durante a produção da sequência, Dishonored 2 (2016), o time decidiu customizar seu próprio motor para melhor atender ao estilo de arte e as mecânicas desenvolvidas, desenvolvendo a Void Engine, que move todos os jogos do estúdio desde então.
Immersive sims não são um gênero particularmente popular ou rentável, como a maioria dos títulos pioneiros dele provam, apesar de zebras como BioShock (2K Games, 2007) e o próprio Dishonored se provarem exceções à regra. No entanto, são jogos que deixam sua marca e quase sempre garantem um status cult algum tempo depois de seu lançamento. Por mais que Deus Ex (Eidos Interactive, 2000) tenha alcançado a marca de um milhão de cópias apenas 9 anos depois de seu lançamento, sua influência no design de espaços interativos é sentida até hoje.
As bases do immersive sim estão mais do que presentes no título da Arkane: a não-linearidade dos níveis e o incentivo à interação e exploração em múltiplos sentidos; os diversos sistemas de física e reatividade que criam um mundo responsivo não só aos nossos impulsos, mas dos avatares virtuais que compõem a simulação em si; o cruzamento entre sistemas e as combinações que nascem da nossa própria engenhosidade, entre muitos outros. Mas parte do motivo que fez de Dishonored um sucesso é a maneira inteligente com que essas bases são usadas, não para confundir o público, mas para incentivá-lo a explorar todas as possibilidades que o título tem a oferecer. Graças à complexidade bruta de seu design, outros jogos do gênero muitas vezes não ganham essa boa vontade.
Depois do lançamento inicial, Dishonored recebeu duas expansões narrativas focadas em Daud (Michael Madsen), o verdadeiro assassino da Imperatriz Jessamine, e nas consequências de seu pacto com o Estranho. Em The Knife of Dunwall e The Brigmore Witches (2013), vemos o personagem buscando redenção pelos seus atos, mas também estamos no controle sobre a maneira pela qual ele se redime, reforçando a proposta de liberdade da Arkane. Além de um novo set de habilidades sobrenaturais diferentes das de Corvo, também passamos a enxergar Dunwall por uma nova perspectiva, expandindo seus horizontes.
Três anos depois, Dishonored 2 foi lançado para PlayStation 4, Xbox One e PC em 11 de novembro de 2016. Agora, contando não apenas com o ponto de vista de Corvo, o título nos deu a oportunidade de jogar com Emily (Erica Luttrell), 15 anos mais tarde, após ter sucedido a mãe como Imperatriz das Ilhas. Um golpe de estado organizado por sua tia perdida, Delilah (Erin Cottrell), com a ajuda do Duque Luca Abele (Vincent D’Onofrio), força um dos protagonistas a fugir de Dunwall e abandonar o outro.
Ao início do jogo temos a escolha de jogar com o Lorde Protetor (agora falante e interpretado por Stephen Russell), recebendo quase os mesmos poderes do jogo anterior, ou Emily, que recebe sua própria benção do Estranho (Robin Lord Taylor) para se opor às bruxarias que ele ofereceu à Delilah. Com a ajuda de Meagan Foster (Rosario Dawson), uma marinheira misteriosa com suas próprias motivações, eles partem para Karnaca, capital da ilha de Serkonos e berço da conspiração para destronar a jovem Imperatriz.
Dishonored 2 expande quase todos os aspectos de seu antecessor. Karnaca, a “Jóia do Sul”, tem uma direção de arte completamente diferente de Dunwall, trocando a austeridade vitoriana por um estilo art déco colonial inspirado em capitais como Havana e Cidade do Cabo. Com o novo motor gráfico, a cidade litorânea pulsa com vida e atração, convidando quem joga a explorar todos os seus cantos em busca de novos detalhes e narrativas. Com ainda mais poderes sobrenaturais à nossa disposição, atravessar a metrópole em direção a um objetivo é uma missão por si só.
Apesar da premissa inicial ser mais ou menos a mesma que a do primeiro, a sequência desenvolve muito melhor a narrativa central que guia suas personagens, fazendo bom uso de seu elenco secundário. Há um salto na variedade de missões e nas consequências de suas execuções que impactam a história principal de jeitos extremamente satisfatórios. Mecanicamente, o jogo não foge das bases estabelecidas no anterior, porém, ao combinar suas novas ideias com o design inspirado de Karnaca, cria um ímpeto que nos carrega pelas quase 20 horas de duração e nos incentiva a repetir os níveis em busca de mais detalhes escondidos, de modo que duas pessoas dificilmente executariam o mesmo nível da mesma maneira.
Um ano depois, em setembro de 2017, o (até agora) último título da franquia foi lançado para as mesmas plataformas que seu antecessor. Dishonored: Death of the Outsider é uma expansão standalone de Dishonored 2, o que significa que você não precisa ter um para jogar o outro. Pouco após os eventos da sequência, Meagan Foster é recrutada pelo velho assassino Daud para um último e ambicioso contrato: matar o próprio Estranho. Daud identifica a entidade sobrenatural como o culpado pelas diversas crises que atingiram o Império nos últimos anos… e ele não está necessariamente enganado. A proposta de Death of the Outsider é não ser apenas mais um capítulo da franquia, mas uma examinação de sua figura mais críptica e interessante.
Mas afinal, como matar um deus? Para início de conversa, os desenvolvedores tiram o sistema de moralidade fora do caminho, deixando que você mate quantas pessoas quiser sem qualquer impacto para a conclusão da trama, denotando o quão diferente Meagan é dos protagonistas anteriores, com um senso moral estabelecido por suas experiências de vida. Todos os novos poderes, frutos de uma benção deturpada do Estranho, são liberados logo no início, o que incentiva a combinação de habilidades, mas elimina a progressão de personagem e tira parte da complexidade tão querida aos jogadores de longa data da série.
Tudo isso contribui para uma experiência mais simplificada, fruto de uma narrativa mais curta, mas que mantém a bola rolando com as performances comprometidas de Dawson, Madsen e Taylor. Bem como nas expansões do Dishonored original, em Death of the Outsider aprendemos a ver o Império sob uma nova perspectiva, reconsiderando tanto a natureza do Estranho quanto suas ações nos jogos anteriores. Hazel Monforton, uma das co-roteiristas do título, escreveu para o periódico PC Gamer, antes de ser contratada pela Arkane:
“Quando o Estranho nos oferece seus presentes, há mais do que duas escolhas a serem consideradas. Nós podemos ser o veneno que infecta a cidade com os horrores intermináveis da violência, ou podemos ser a cura que os suprimem sem a necessidade de outro sacrifício. Enquanto a população urra por sangue e para que o aparato de justiça e ordem execute os dissidentes nas ruas, Dishonored nos pergunta se o Estranho é tão temível quanto as paredes que o mantém de fora. Nós somos convidados a testemunhar a violência que mantém as hierarquias de Dunwall e Karnaca, a tomar parte delas ou rejeitá-las.”
Hazel Monforton, Uncovering the meaning of the Outsider, Dishonored’s misunderstood god
É a narrativa mais emocionalmente madura da série até agora, e o que poderia facilmente ser uma história cínica sobre a desmistificação de um ídolo pagão se transforma numa síntese dos principais temas de Dishonored até então. O sacrifício de alguns de seus elementos mais icônicos se revela necessária para que as verdadeiras ambições narrativas da Arkane entrem em foco. Apesar de tantas mudanças, uma filosofia permanece guiando cada uma das decisões feitas pelos desenvolvedores: a conclusão da saga do Estranho está invariavelmente nas suas mãos.
Seja por conta de um lançamento conturbado ou por um desgaste da marca, nem Dishonored 2 ou Death of the Outsider tiveram o mesmo sucesso financeiro do primeiro jogo da franquia. Mesmo não estando oficialmente em hiato criativo, a Arkane Studios se concentrou em outros projetos, como o assustador Prey e o frenético Deathloop (um dos melhores jogos de 2021), que se utilizam das bases de Dishonored para criar suas próprias experiências. Pode-se dizer que, por mais que não tenhamos tido um novo jogo da série desde 2017, os elementos que o inspiraram continuam sempre presentes no trabalho do estúdio.
Não só isso, os elementos do próprio immersive sim parecem ter se popularizado nos últimos anos graças ao trabalho de títulos híbridos. As comparações entre Cyberpunk 2077, um dos mais esperados da década, e os últimos jogos da franquia Deus Ex não foram poucas, por mais que o lançamento deste tenha sido um desastre à parte. Os grandes blockbusters da indústria puxam cada vez mais para uma estética realista que se adequa suspeitosamente com as ferramentas que o gênero tem a oferecer: Red Dead Redemption 2, The Last of Us Part II, God of War, entre tantos outros, buscam nos imergir em seus mundos criando simulações meticulosas e dolorosamente detalhadas.
Mas o que falta em todos eles para serem chamados de simuladores imersivos é justamente o tipo de agência que Dishonored oferece animadamente a quem joga: a chance de criar seu próprio estilo, de desenhar estratégias e ter que lidar com as consequências de seus desvios é uma das características definitivas de um meio pautado em sua interatividade. Há 10 anos, a Arkane Studios sorrateiramente nos oferecia o que hoje consideramos um dos melhores jogos de todos os tempos, e está mais do que na hora de revisitar a honra dessa experiência.