Gabriel Oliveira F. Arruda
Durante a EA Play Live de julho, foi anunciado que o primeiro jogo da franquia sci-fi de terror e sobrevivência Dead Space ganharia um remake completo. A obra do falecido estúdio Visceral (na época chamado EA Redwood Shores) será atualizada para a nova geração de consoles e PCs, entregando “melhorias na história, nos personagens e nas mecânicas de gameplay”, se utilizando da famosa Frostbite Engine. O clássico de 2008 será retrabalhado pelo EA Motive, o estúdio responsável por Star Wars: Squadrons, que está encarando o projeto como uma “carta de amor para a franquia”, segundo um comunicado oficial da empresa.
Mas será que Dead Space precisa mesmo de um remake? A primeira aventura do engenheiro Isaac Clarke estabeleceu, ou pelo menos ajudou a popularizar, várias das tendências observadas no gênero até hoje, muitas vezes sendo considerado como um dos melhores jogos de terror de todos os tempos. O que há no pesadelo espacial de Isaac que precisa ser revisado e, mais importante, como revisá-lo sem comprometer a experiência original?
Brilha, brilha, estrelinha… Muito acima da colônia de mineração Aegis VII, a gigantesca nave USG Ishimura vaga silenciosamente pela imensidão do espaço. Dentro dela, um solitário engenheiro luta para obter respostas e sobreviver a uma praga que se alastrou por toda a tripulação, obrigando-os a retornar na forma dos grotescos necromorfos, monstros de membros alongados e distorcidos cujo único impulso discernível é matar.
Isaac Clarke (nomeado em honra dos autores de ficção científica, Isaac Asimov e Arthur C. Clarke) não estava, em nenhum sentido da palavra, preparado para essa situação. Ele não é um herói de ação, um matador treinado pronto para botar ordem na casa e expulsar os monstros. Ele é só um mecânico procurando por sua namorada desaparecida, tentando não morrer no processo. Ele também é um protagonista terrivelmente quieto, apenas expressando sons de dor (quando recebe dano ou morre) e alívio (quando não morre). Parte do que torna a sua atmosfera de terror tão densa, é o quanto Dead Space enfatiza a fragilidade de Isaac perante os eventos que estão se desenrolando ao longo de suas 12 horas de narrativa.
Porém, é nessa fragilidade que encontramos sua maior força, tanto como protagonista quanto como avatar do jogador nessa situação estarrecedora: Isaac é alguém que resolve problemas. Separado do oficial de segurança Hammond (Peter Mensah) e da especialista de computadores Daniels (Tonantzin Carmelo), Isaac recebe instruções dos dois à distância para achar maneiras de consertar a nave e ir superando as dificuldades técnicas que se apresentam, cenário após cenário. Essa estrutura procedural de “resolver problemas” faz com que até as situações mais críticas sejam quebradas em etapas e que o jogador se conecte com a personalidade de seu protagonista silencioso.
Muitas das mecânicas de gameplay foram modeladas a partir do altamente popular Resident Evil 4, jogo que mudou o foco da aclamada franquia do terror para a ação. A câmera no ombro do protagonista e a mira laser, assim como a variedade de maneiras de dar cabo dos inimigos e manejamento do inventário são claros exemplos disso. Sua narrativa também veste suas inspirações com orgulho: o clássico O Enigma do Horizonte de 1997 é uma das obras citadas pelo criador da franquia, Glen Schofield, na criação dos ambientes da Ishimura:
“Eu achei que O Enigma do Horizonte sucedeu em criar narrativas que aconteciam nos planos de fundo. Uma das personagens está de costas na cabine do piloto e, atrás dela, as luzes se acendem e o vidro está coberto de sangue, não parece normal, parece que algo horrível aconteceu e essa personagem não faz ideia. E eu queria que essa sensação se mantivesse durante todo o jogo.”
Glen Schofield, “How Dead Space’s Scariest Scene Almost Killed the Game”.
A atmosfera é concretizada através de um design de som inspirado, que adiciona personalidade não só às criaturas, mas à própria nave também. Dead Space encontra seu terror nos cantos frios e escuros de uma espaçonave à deriva, nas cenas nojentas que se desenrolam e nos inimigos macabros que Isaac encontra. E a única maneira de enfrentá-los é seguir em frente e ouvir os conselhos escritos em sangue nas paredes: “Corte os membros deles.”
Mesmo com todas as influências, o jogo ainda consegue criar novas mecânicas que mudam radicalmente a experiência. Nada de headshots aqui, a única maneira de dar cabo de um necromorfo é separando seus membros do corpo e pisar neles para garantir que estão mortos. Esse sistema adiciona uma dose de estratégia aos conflitos, deixando cada combate equilibrado e justo, por mais que Isaac esteja sempre em desvantagem. Cada vez mais os bichos vão deixando de parecer humanos e, com isso, sua estratégia para dar cabo deles também precisa ir se diversificando. Dispensando os movimentos elaborados de Leon Kennedy, Dead Space aposta na simples brutalidade de seu protagonista, com grandes resultados.
A situação de Isaac se reflete no equipamento que o engenheiro tem à sua disposição para dar cabo da ameaça: uma armadura pesada que limita seus movimentos e armas improvisadas, adaptadas para as ameaças. Os recursos são sempre limitados e fazer uma melhoria em um aspecto sempre significa não fazê-la em outro, criando um sistema de risco e recompensa viciante, que incentiva os jogadores à acharem e dominarem suas próprias preferências.
Talvez a mais icônica dentre as armas futuristas de Isaac seja a primeira que ele encontra, no início do jogo, abandonada por alguém que provavelmente não leu os avisos nas paredes: o cortador de plasma. Usada por mineiros para separar elementos, o cortador é uma ferramenta compacta e simples, disparando três tiros em linha, podendo mudar o eixo de vertical para horizontal com apenas um botão. Bem como o próprio Isaac, é uma bela de uma gambiarra, fazendo o que tem de ser feito e, caso você invista seriamente nela, a melhor arma disponível. Capaz de despachar onda após onda de mortos reanimados com tiros bem posicionados, o cortador de plasma é uma das ferramentas principais durante a jornada.
Muito antes de God of War (2018) organizar uma campanha de marketing inteira baseada em sua narrativa em one take, Dead Space já apresentava ambições similares. Apesar de conter pausas entre seus capítulos conforme Isaac se move entre os diferentes setores da Ishimura, essas pausas ainda são diegéticas o suficiente para impressionar. Juntando a isso o fato de todos os menus estarem integrados em tempo real com o visor do protagonista, a simples ação de acessar um deles vira uma experiência em si só, um cálculo de risco e um teste de atenção.
Talvez a parte mais celebrada de sua UI (“user interface”) seja a maneira como ela convém a “vida” do protagonista: na coluna de Isaac, podemos ver uma coluna de luz que vai diminuindo de tamanho e mudando de cor conforme ele recebe dano. Isso permite que o jogador esteja sempre consciente da surra que está tomando e dos itens que precisará usar para se recuperar sem que tire os olhos da ação e se distraia. Mais de 10 anos depois, o HUD criado pela EA Redwood Shores ainda é considerado um dos patamares de excelência na criação de interfaces diegéticas em jogos.
“Nós descobrimos que o HUD (“heads-up display”) é efetivamente uma janela de vidro que separa você, o jogador, do personagem que você controla. Então, se nós conseguíssemos levantar essa barreira, você repentinamente mantinha essa conexão.”
Dino Ignacio, antigo UI designer de Dead Space, “Why games can’t abandon the HUD”.
Como dito anteriormente, a maior parte da narrativa do título acontece nos ambientes que o engenheiro encontra e nas formas cada vez mais grotescas que os necromorfos tomam. Assim, o silêncio do protagonista surge não como um impedimento na narrativa, mas como uma legítima resposta emocional aos eventos que acontecem. Se para mim é difícil descrever a visão de um feto cadavérico com três tentáculos tentando me matar, suponho que para Isaac também seja.
Conforme você explora os corredores apertados e os intestinos mecânicos da USG Ishimura, uma conspiração de segredos e cultos religiosos começa a surgir, e a verdade por trás do destino da tripulação é revelada. Por mais que não conte com as sequências cinematográficas de títulos modernos, o mistério ao redor da narrativa de Dead Space continua imersivo e engajante e, apesar de sua idade, seus visuais ainda ajudam a contar sua história (com exceção das expressões faciais de seus personagens).
Dead Space é um dos raros casos em que, mais de uma década após seu lançamento, é realmente difícil enxergar aspectos que estejam explicitamente ultrapassados. Sua câmera, seu combate metódico, sua narrativa cênica, são todos observados em títulos modernos, não só de terror, e até mesmo adotados por franquias antigas. Considerando isso, o que um remake do título teria a oferecer?
Apesar da narrativa ter o seu apelo, é possível ver como a obra se beneficiaria de melhores resoluções nas plataformas da nova geração e computadores potentes. Honestamente, só imaginar a quantidade e variedade de necromorfos com texturas e sons ainda mais realistas me faz ter calafrios. A história pessoal de Isaac e sua busca por Nicole (Iyari Limon) também precisa de poucos ajustes, principalmente melhorando a expressividade das personagens e capturando as nuances de seus atores. A já confirmada adição de opções de acessibilidade também são mais do que bem vindas, já que são cada vez mais presentes em jogos AAA.
Mas um remake também precisa de algo a mais. Por mais que melhorias técnicas sejam importantes, títulos recentes como Resident Evil 2 e Final Fantasy VII Remake provam que mais do que “cartas de amor”, esses jogos precisam se justificar sozinhos. É preciso que haja intenção por trás das mudanças e que essas mudanças reflitam o sentido dado pela obra original. Um remake de Dead Space precisa achar maneiras inovativas de implementar diversas mecânicas que na época foram novidade, mas que hoje são via de regra, usando as ferramentas à sua disposição, muito como o desafortunado herói de sua história.