Adriano Arrigo
“Mulher arretada” é a forma como Daniela Mercury se autointitulou entre uma e outra música, dentre as vinte e três tocadas na 13º Virada Cultural Paulista, em Bauru. Mercury se ajeitava no palco, sincronizava os braços e estufava o peito. “Gosto de quando termina a música assim”, comentou em um dos inúmeros apontamentos e discursos de sua apresentação. É a famosa pose que abre espaço para chamar as mulheres com forte presença de palco: diva. Mas, se tratando de uma figura que tanto se identifica com o Brasil, seu título tem que vir à brasileira, e mais especificamente, com gosto baiano.
“Rainha baiana” também, como alguns gritavam bem perto ao palco que Mercury fez questão de aproximar do público quando pediu que os alambrados fossem retirados. Não havia perigo já que no início do show não havia mais do que trinta pessoas. A chuva moderada afugentou o público no início da noite de domingo, 21 de maio, mas não foi o suficiente para desanimar Mercury. Pelo contrário, a chuva serviu como um complemento para a apresentação que, reforçada pelas luzes do palco, criou um ambiente intimista e uma forte ligação entre a artista e o público.
Engraçado pensar ainda que Daniela veio com grande energia em um palco quase nu. Humilde como costumam ser os palcos montados no Parque Vitória Régia, o único diferencial eram os longuíssimos panos pretos de mais de cinco metros pendurados nas laterais, e alguns spots de luz principais. Era tudo que Daniela tinha. Não havia tambores, percussões e trio elétrico.
Mas a baiana não precisava de muito: veio com o setlist que segue seu último disco ao vivo lançado ano passado, O Axé, a Voz e o Violão. Para acompanhá-la, o talento de Jaguar Andrade, que possuía apenas um violão e uma guitarra para simular todo um carnaval que adentra Mercury. E pra ela, o artifício de um figurino que emenda em um conjunto somente uma espécie de capa alimentando ainda mais a pose de diva ou, como quiser, mulher arretada.
E, apesar de vestir cores que não lembram exatamente o que se entende das cores do Brasil (e isso é ótimo), Daniela usou de seus poucos artifícios – a incluir seu corpo – em danças, performances, saltos e gestos. Lançou mão das batidas típicas da sua música para entregar uma apresentação performática.
Ao tocar o hino “Swing da Cor”, as palmas da plateia ocuparam o lugar do que um dia fora Olodum. Mas a forma pocket de seu show condiz já com sua carreira consolidada e mostra uma firmeza em apostar em outros formatos sem perder seu espaço na música, de fato, popular e brasileira.
Daniela Mercury trilhou um caminho paralelo na música brasileira da década de 80. Enquanto grandes nomes da música brasileira nasciam em um cenário impregnado pelo rock, Mercury escreveu sua visão autentica do Brasil através da axé music. Porém, diferente da máquina de fazer dinheiro que se transformou o gênero, para ela o estilo é um protesto via tambores, tema afirmado em “Protesto Olodum” em que ela canta a distopia brasileira do nordestino.
Não a toa também, “O canto dessa cidade”, trata-se da apropriação da cidade pelas pessoas, através do Carnaval e a apreciação de sua beleza. “Devemos tomar conta do que é coletivo e não fazemos isso trabalhando, mas sim confrontando. Sejamos desobedientes e ocupemos os espaços!”, contou no show. Não só nesse momento, mas o discurso de Mercury alcançou fortes tons políticos em toda a sua apresentação; em nuances brandas, graças à sua doçura e simpatia.
Diferente de uma crítica esvaziada de lógica, o discurso de Mercury estava muito além de criticar um governo ou outro – os Fora Temer! não foram puxados e nem continuados por ela – ou uma política ou outra. “Que porra de país é esse? Esse é o meu país” em resposta ao coros que se dão em inúmeros cover de “Que país é esse?” que, devido ao seu bom senso, não foi cantado em sua apresentação. Daniela parecia estar muito mais interessada em colocar o povo brasileiro como protagonista de sua própria história.
E como se não bastasse o tom político, no meio do show as luzes abaixaram e Daniela começou “Pai, afaste de mim esse cálice” que, aparentemente, todos ali entenderam a mensagem e cantaram juntos Chico Buarque. Além desse, a bela “Noturno” de Fagner também ganhou espaço, mas foi em “Como nossos pais”, que Mercury ajoelhou-se para levantar em coro os presentes, inclusive os seguranças – em um show que a sua presença fora totalmente dispensável.
O público, que crescia ao cessar da chuva, podia ficar bem perto do palco e o contato visual com Daniela Mercury não era raro de acontecer. A heterogeneidade do público preencheu a falta do carnaval que o nome da artista está assimilado. As cores e a diversidade da festa refletiam na plateia: crianças, bêbados cheirando a cachaça, casais heterossexuais e homossexuais e pessoas mais velhas.
Parece que a cantora se tornou parte do imaginário brasileiro em seus trinta anos de carreira. “Sendo você fã novo ou antigo, você já ouviu O Canto da Cidade”, brincou, ao dar prioridades para suas novas composições. Porém, os hits estavam presentes, como a balada “À Primeira Vista” e “Nobre vagabundo” – essa última com a alteração da letra, feita pela plateia, para “Temer Vagabundo”. Mas Mercury corrigiu que ser vagabundo não é nesse sentido, e sim perante as pressões sociais, como os artistas fazem.
Daniela puxou poemas, citou Fernando Pessoa e Manuel de Barros. Em sua música “Trio em Transe”, as homenagens ao cinema brasileiro são feitas dando a música aquele abrasileiramento dos temas culturais universais a realidade do país, costumeiro aos anos 70. Não obstante, reforçou os 100 anos da Semana de Arte Moderna e comentou sobre a importância do movimento antropofágico antes de entoar “Antropofágicos São Paulistanos”.
Por este show na Virada e suas apresentações nos últimos anos, poderão dizer que Daniela Mercury não está sabendo separar a política de sua carreira musical. Mas como poderia? Sua carreira é política por estar ligada a questões que ferem o status quo brasileiro. Muito antes do momento em que assumiu o relacionamento com sua esposa em 2013, Daniela é mulher do nordeste e do candomblé: “Vamos mudar esse país católico e capitalista”, clamou. Daniela continua sendo um brilhante ponto fora da curva no axé music. Diva, mulher arretada e rainha, rainha má.