Humberto Lopes
Dançando no Escuro, Dancer in the Dark no idioma original, completa 20 de anos de legado como o musical mais triste de toda a história do cinema. A obra lançada em 2000 é a primeira produção do gênero da carreira de Lars Von Trier, polêmico diretor dinamarquês que assinou o roteiro e direção do longa-metragem estrelado pela cantora islandesa Björk.
A história se passa no interior dos Estados Unidos nos anos 60 e gira em torno da vida de Selma Jezkova (Björk), uma imigrante tcheca que está ficando cega. Ela trabalha arduamente em uma metalúrgica com o objetivo de juntar dinheiro para poder pagar uma cirurgia para o seu filho Gene (Vladica Kostic), que sofre da mesma doença hereditária degenerativa que leva, lentamente, à cegueira da personagem.
Em uma realidade miserável, Selma tem nos musicais de Hollywood a sua válvula de escape para o mundo trágico em que habita. A protagonista vive esses pequenos momentos de felicidade junto de sua amiga Kathy (Catherine Deneuve), que durante as sessões no cinema narra e representa com os dedos nas palmas das mãos de Selma o que está acontecendo nas cenas.
Entre operar máquinas em meio aos ruídos de uma indústria metalúrgica e juntar cada centavo em busca de curar seu filho, Selma foge do mundo em transes por meio dos musicais que ela mesmo interpreta com a ajuda do universo que a cerca, e aí entendemos a escolha de Björk para o papel. As cenas musicais são impecáveis, é quase inimaginável que outra atriz poderia encarnar tão bem a personalidade e peculiaridades de Selma, e a islandesa consegue isso com a maior entrega de toda a filmografia de Lars Von Trier.
Não foi à toa que o filme foi vencedor do prêmio de Melhor Atriz e da Palma de Ouro no Festival de Cannes, maior troféu da cerimônia. Mesmo aclamado, Dançando no Escuro foi e ainda é um filme difícil, e isso reflete em toda a situação que Selma é colocada. Com a piora da cegueira, que todos até então não sabiam, ela se desconcentra em um dos transes musicais e quebra uma das máquinas da operação, o que resulta em sua demissão.
Como em todos os filmes de Lars Von Trier, o sofrimento feminino é explorado ao máximo. Selma se vê traída por Bill (David Morse), policial que junto com sua esposa Linda (Clara Seymour) aluga um trailer para a operária morar com o filho.
Ao revelar a sua cegueira progressiva para o amigo e o segredo do dinheiro guardado para a cirurgia de Gene, surge o aspecto mais comum da crueldade humana que o diretor dinamarquês exibe constantemente em sua filmografia. Doce e gentil, Selma tem todo o seu dinheiro roubado e não tem outra opção que não seja tentar recuperar a única forma de salvar o seu filho do terrível destino que o espera.
A cena do confronto entre os dois se desenrola em um clima lento de suspense que leva ao inevitável, Selma mata Bill e entra em mais um transe, protagonizando um de seus mais peculiares delírios até então. O dueto musical que se desenrola entre o cadáver e a imigrante soa estranho, mas é preenchido de um presságio. Tudo vai piorar.
Mesmo conseguindo fugir da cena do crime com o dinheiro e pagar a cirurgia de Gene, a imigrante já tinha o futuro traçado pela desgraça, e é presa acusada de homicídio. A prisão aconteceu durante o ensaio do musical A Noviça Rebelde (The Sound of Music), que ela seria a protagonista. Neste momento é perceptível como o comportamento de todos em relação a ela muda.
A crítica de Lars Von Trier aos Estados Unidos e o modo de vida do país é constantemente colocada em cena, mas seu ápice é demonstrado no julgamento de Selma, que é acusada de ser uma cruel assassina e simpatizante do comunismo, por conta da origem tcheca. Até a cegueira de Selma é colocada em xeque diante do júri, que sentencia a imigrante à morte.
Com a progressão da cegueira e sozinha na prisão esperando a morte, ela pode contar apenas com a confiança de Kathy e Jeff (Peter Stormare), que é apaixonado por ela. Selma aceita o implacável destino, diante que seu filho tenha a chance de fazer a cirurgia.
No ambiente silencioso e solitário da cela Selma entra em seu último transe, e a versão mais triste já gravada de My Favourite Things, do musical A Noviça Rebelde, é cantada aos prantos por uma mulher que sabe que não há volta, mas tenta mesmo assim buscar em sua fatalidade o mínimo de felicidade.
O clímax do filme avança em uma angustiante nuvem de tristeza, e apesar da mínima chama de esperança, que em nenhum momento o filme cria, mas é inevitável ao telespectador, temos uma Selma que se dirige contando passo a passo o seu rumo em direção a forca, e ao entoar uma última canção, em desespero, uma mulher inocente morre.
A cena é horripilante. Björk canta a plenos pulmões “Eles dizem que essa é a última canção, eles não nos conhecem, sabe. É apenas a última canção, se deixarmos que seja” e o corpo de Selma caí pendurado na forca. É o fim de uma trajetória.
É um final devastador e combina com toda a estética do longa-metragem, gravado nos moldes do Dogma 95, movimento de Lars von Trier e Thomas Vinterberg. Juntos, criaram uma série de regras com o objetivo de produzir filmes com o máximo de realidade possível, fugindo dos aspectos comerciais das produções da época.
A filmagem crua, despida de efeitos e iluminação especial, com cenas gravadas a mão e tremidas causam estranhamento à primeira vista, mas são essenciais para entender o movimento. Este impactou a produção independente dinamarquesa com a realização de filmes de baixo custo e colocou no mundo clássicos como Festa de Família (Festern), de Vinterberg, e Os Idiotas (Idioterne), dirigido por Lars von Trier, ambos lançados em 1998.
Apesar de ser influenciado pelo Dogma 95, Dançando no Escuro não se encaixa em todos os parâmetros da escola, o principal motivo deles é ser um musical. Entretanto, em sua essência o filme certamente trabalha com todas as outras características que fazem dele um produto do gênero tão único.
Em seu lançamento, em 2000, a produção já gerava reações conflitantes de quem foi até os cinemas chorar a dor de Selma, mas a discussão em torno do longa só cresceu nos últimos anos, especialmente no que se refere ao diretor. A história do esgotamento físico e psicológico que Björk sofreu durante as gravações já era conhecida há anos. Durante as filmagens, que aconteceram na Suíça, a atriz chegou a fugir sem deixar pistas, só retornando devido à insistência de amigos.
Mas a história completa por trás dos motivos da fuga de Björk só foi revelada em 2018. Devido a influência do movimento #MeToo, que mobilizou diversas atrizes a relatarem casos de assédio em Hollywood, a protagonista de Dançando no Escuro finalmente quebrou o silêncio sobre a experiência com o diretor Lars Von Trier.
No post, em sua página do Facebook, a cantora manifestou apoio ao movimento e citou o seu caso de assédio com um cineasta dinamarquês. Após o diretor negar as acusações, Björk deu detalhes sobre o caso de assédio que sofreu nas gravações.
Na época do lançamento do filme, Björk prometeu que nunca mais voltaria a atuar, talvez devido aos traumas da gravação, mas 20 anos depois ela divulgou sua volta aos cinemas em The Northman, do diretor Robert Eggers, previsto para ser lançado no próximo ano. O mundo terá mais uma chance de ver a islandesa mostrar o seu talento, que em Dançando no Escuro é fora do convencional, com uma entrega emocional que tem a marca visceral da cantora.
Sem dúvidas Dançando no Escuro é um musical para chorar de tristeza, não há no filme a mesma válvula de escape que Selma encontra nos clássicos. E na filmografia de Lars Von Trier, o longa é mais um na lista de sadismos do diretor, que não perde a oportunidade de criar uma obra com mulheres que sofrem o pior, assim como as suas atrizes. Mas, apesar de toda a polêmica, é certo que sem Björk esse filme nunca poderia ter acontecido, nem deveria ser cogitado, e o sentimento catártico gerado pelo talento da atriz faz com que a experiência de assistir, pelo menos uma vez, seja obrigatória.