Gabriel Leite Ferreira
Tempos turbulentos originam manifestações culturais turbulentas. Em 1984, a palavra de ordem no Brasil era “crise”. A Ditadura Militar chegava aos vinte anos desestabilizada pela inflação e o povo, já com certa liberdade se comparado aos primórdios do regime, sentia-se ainda mais impelido a combater as autoridades. Daí o movimento das “Diretas Já”, que reivindicava o voto direto para presidente e serviu de prenúncio da redemocratização posterior.
Em paralelo a isso, nas periferias de cidades do Brasil, mais notavelmente na capital São Paulo, jovens desocupados tentavam se organizar em busca de algo além dessa conturbada realidade. Era o movimento punk apropriado por indivíduos que não se importavam em corresponder aos precários padrões sociais da época – legítimos “sem futuro”. Nesse contexto, o Ratos de Porão se destacou por preferir a crueza e a rispidez do hardcore punk à cadência de seu pai, o punk rock clássico, além de ter sido a primeira banda punk da América Latina a gravar um disco individual.
Lançado em 1984 pela Punk Rock Discos e reeditado em CD e vinil pelos selos Hearts Bleed Blue e Laja Records em Março último, “Crucificados Pelo Sistema” marcou época ao transmitir da forma mais direta possível a insatisfação, os medos, as ideias e os ideais tortos da juventude perdida paulistana. A informação era escassa, o tédio, enorme; não havia tempo para invenções. A maior prova disso é o tempo que as dezesseis faixas levaram para ser gravadas e mixadas: seis horas. “Tudo foi montado de qualquer jeito, o técnico de som não estava entendendo nada e nós muito menos”, escreveu o vocalista, ex-VJ da MTV, traidor do movimento punk e atual youtuber João Gordo nos créditos da reedição de 2008 da estreia do Ratos de Porão. Ou seja, técnica e comedimento passaram longe.
Ainda bem. Caso os quatro adolescentes – João Gordo nos vocais, Jão na bateria, Jabá no baixo e Mingau na guitarra – tivessem levado em conta os vários conceitos mercadológicos vigentes no rock mainstream da década de 1980, “Crucificados Pelo Sistema” não teria a mesma urgência em ser ouvido, seja há 30 anos, seja agora. Ao longo de dezesseis faixas em quase dezenove minutos, a banda faz questão de deixar tudo explícito: a sonoridade é básica e as letras, quase didáticas.
Em “Morrer”, o niilismo é sincero e trágico: “Tenho medo do presente, tenho medo do futuro e de tudo o que nos cerca / Sigo meu caminho / Meu caminho é morrer”. Já na clássica “Não Me Importo”, a negatividade é generalizada. “Agressão/Repressão” não poderia ser mais simples em sua mensagem contrária à truculência policial, enquanto “Corrupção” parece até inacabada em seus três versos: “A corrupção está acabando com a nação / E todo mundo está fingindo ser irmão / Não, não vai dar não”. O auge da brevidade, no entanto, é “Caos”, faixa na qual Gordo se contenta em berrar por alguns segundos. “Esse mundo é um caos / Essa vida é um caos / Caos”, ele vocifera, e a canção acaba logo em seguida.
Musicalmente, o mérito de “Crucificados Pelo Sistema” foi adaptar o hardcore do exterior às condições técnicas e econômicas dos envolvidos. Microfonias e desafinações são uma constante – o álbum foi gravado no esquema ao vivo em estúdio –, quase não se ouve o baixo e a bateria não é audível em certos momentos, também. Um retrato cru do espírito de uma época que não deveria ser relembrada com nostalgia. E é aí que está o valor do primeiro álbum do Ratos de Porão, apesar de todas as limitações. Por isso, seu relançamento pela gravadora Hearts Bleed Blue, 32 anos após o original, é justificado e muito bem-vindo.
A reedição é especial por resgatar gravações ao vivo de 1983 até então inéditas em um EP de sete polegadas que acompanha o vinil, de 180 gramas e agora em capa preta – as primeiras prensagens variavam entre o branco, o azul e o vermelho. O show em questão ficou marcado como o primeiro evento punk no Napalm, extinta casa noturna de São Paulo e uma das poucas a abrigar as bandas do movimento à época.
Tempos turbulentos originam manifestações culturais turbulentas. Em 2016, a palavra de ordem no Brasil é “crise” e todos os acontecimentos inerentes a ela – o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a suposta polarização política e os extremismos da direita e da esquerda – sinalizam tempos de transição. Que a nostalgia masoquista dos conservadores seja combatida com a mesma urgência latente de “Crucificados Pelo Sistema”.
Republicou isso em REBLOGADOR.