Adriano Arrigo
É muito estranho pensar que um filme como Velozes e Furiosos 6 tenha passado no Teste de Bechdel. Para quem não conhece, é um teste nada científico que leva somente em consideração prática a representação das mulheres em filmes. Se houver pelo menos duas delas e as mesmas aparecem conversando entre elas sobre algum tópico que não seja homens, esse filme passou no Teste de Bechdel. Parece simples, mas é assustador a quantidade de filmes que não conseguem passar nesse sistema criado pela cartunista americana Alison Bechdel, autora de Fun Home.
Fun Home tem muitas semelhanças com o Teste de Bechdel. A graphic novel autobiográfica foi lançada em inglês em 2006, mas há exatos 10 anos ganhava sua tradução para português pela editora Conrad. Após ler Fun Home, é possível identificar de onde veio a inspiração para criar um teste com um formalismo tão rigoroso a ponto de poder ser aplicado de forma universal no cinema (mesmo que ele possa ser apenas uma brincadeira levada a sério).
Quando criança, Alison teve diversos ‘testes’ que ela mesmo se colocava à prova. Em seu diário, só escrevia o que realmente aconteceu, limitando acontecimentos duvidosos com pontos finais rigorosos, transformando seus relatos em apenas um amontoado de frases precisas, porém sem sentimentos. Atitudes assim são comuns às crianças que, por exemplo, cismam em pisar somente nos ladrilhos brancos ao andar pelas calçadas quadriculadas do centro de qualquer cidade.
Mas tudo para a protagonista de Fun Home tinha um ar rigoroso para acontecer. Era uma dependência de métodos quase científicos inventados de sua própria cabeça, mas que tinham um único objetivo que, também, é a força que move a graphic novel.
A autora teve uma delicada relação com sua família e, em especial, com seu pai. Aliás, sua história traz tanta especificidade que é difícil encontrar uma pessoa na situação em que são apresentadas que não seja a própria. Tais quais os seus jogos infantis e o próprio Teste de Bechdel, a graphic novel ilustra a vida de uma menina que se descobre lésbica, mas que fica a sombra de um pai homossexual.
Está certo que quadrinhos autobiográficos poderosos como Retalhos, de Craig Thompson, ou Persepolis, de Marjorie Satrapi, tratam também de períodos muito específicos e detalhados da vida de seus autores. Mas a obra de Bechdel é forte justamente por representar um mundo particular, coeso e arquitetado milimetricamente que se justifica em cima de banalidades cotidianas, mas ao mesmo tempo é fortemente influenciado por referências literárias.
Bechdel imprime nas paginas de Fun Home toda a carga literária que seu pai lhe passou. Ter um pai que indica que os jardineiros leiam O Grande Gatsby fez com que a autora também obrigue seus leitores consumam obras fundamentais da literatura universal contemporânea, para compreender melhor suas analogias e indicações. Porém, não conhecer tais obras não estragam a experiencia de Fun Home, pelo contrário. É como se seu livro fosse a reinterpretação desses clássicos, uma adaptação de sua infância até a fase adulta.
Mas esse é um aspecto muito pequeno que seu pai lhe deixou, levando em consideração a fonte de dissipação de influência que o mesmo teve em todos ao seu redor. Bechdel divide sua biografia em partes mais ou menos esquematizadas em cima dessa influências. Para ela, o pai é um anti-herói (título do último capítulo). E tal qual, possui atitudes duvidosas que deixaram sérios machucados nela e nas pessoas ao seu redor.
Mas Bechdel explica – e, o melhor, aceita – seu pai. Pelo menos tenta. Usando de referências literárias que vão de Homero a Proust, faz uma reconstituição de um pai ausente, retraído e abusivo, mas acima de tudo, fascinante. Tenta, inclusive, reinterpretar a morte dele fazendo comparações com personagens literários ao mesmo tempo que tenta ressignificá-lo para poder, enfim, perdoá-lo.
Antes de Fun Home, Bechdel já era conhecida no “meio” gay por Dykes Watch Out For, tirinhas que mostravam seu olhar sobre o mundo, em especial, o lésbico. Com forte teor feminista, é interessante ver a visão dela sobre uma figura paterna tão polêmica quanto seu pai. Ainda mais ele sendo extremamente afetado por esterótipos gays (apaixonados por objetos fálicos, ser culto, decorador) ao mesmo tempo que incorpora um papel de gênero masculino para levar a vida numa cidade limitada. A autora entende e compreende toda essas faces de um cubo de difícil decifração que poucos (ou talvez ninguém) tenha conseguido compreender por completo.
Mas Bechdel fez o possível. Ela consegue em sua obra conectar todos os pormenores que fizeram seu pai ser o seu pai. Coisas realmente muito pequenas, como o fato dele cultivar amizades com garotos mais novos, que depois tornariam seus amantes, e relacioná-los ao seu hobby de cultivar orquídeas são de uma interpretação ímpar, delicado e preciso de sentimentos que rodeiam relacionamentos gays.
E mesmo que a orientação sexual de ambos seja a mesma, isso nunca foi algo forte o suficiente para conectá-los. Em uma das cenas, seu pai conta sua primeira experiencia sexual com homens, além de confessar sua vontade ser uma menina quando criança. “Eu também! Eu me vestia como menino quando criança. Lembra-se?”, diz Bechdel ao pai que não responde, ou, pelo menos, não dá a resposta que queria receber.
Fun Home, então, mostra as diferenças que existem entre os que partilham de uma igualidade e de laços afetivos forjados pelo ambiente familiar, mas que não são fortes o suficiente para despertar ligações afetivas. Para essa especifidade, Bechdel responde em suas páginas que, no final, isso não importa. Assim com o seu teste aplicado a filmes, ela criou um sistema lógico para compreender seu pai, para aceitá-lo e, por fim, criar uma ligação forte o suficiente para resinificá-lo em sua memória.