Há 85 anos, John Ford antecipava Portinari com As Vinhas da Ira e criava uma versão norte-americana de Os Retirantes

Na imagem está Tom Joad do lado esquerdo. Ele usa uma boina, uma camisa de botão por baixo e um sobretudo preto e sujo por cima. Ele está olhando para a esquerda, para algo fora do plano. Ao seu lado está Ma Joad, ela olha para Tom com uma expressão preocupada. Ela usa uma blusa velha.
As Vinhas da Ira é uma adaptação do livro de John Steinbeck (Foto: 20th Century Studios)

Guilherme Moraes

Após a Depressão de 1929, os Estados Unidos entraram em uma crise profunda que afetou diversas áreas, dentre elas, a agrária. Nesse contexto entra As Vinhas da Ira (1939), livro de John Steinbeck que foi adaptado aos cinemas por John Ford em 1940. Ainda que seja um pouco ofuscado pela outras obras-primas do diretor, The Grapes of Wrath, no original, se consolidou na história do Cinema como uma grande análise sociopolítica, feita a partir da destruição de uma família em meio a instabilidade econômica que, de certa forma, dialoga com o quadro Os Retirantes (1944) de Candido Portinari.

Na trama, Tom Joad (Henry Fonda) retorna para casa depois de anos cumprindo sua pena. No entanto, o que ele encontra é um lar abandonado, com madeiras desgastadas e ambiente escuro. Dentro do local, o personagem Muley Graves (John Qualen) explica ao protagonista e a Casy (John Carradine) – ex-pregador que irá acompanhar Tom em sua jornada – que a sua família, assim como todas as outras da região, foram expulsas de suas terras. Ao encontrar seus parentes, os dois, junto com os Joad’s, saem em direção a Califórnia, em busca de oportunidades.

Na imagem está Tom Joad, à esquerda, e Casy, à direita. Tom está olhando para a direita, para algo fora do plano. Casy está olhando para Tom. Uma luz que vem de baixo, ilumina o rosto dos dois.
“Então porque está fazendo isso? Contra sua própria gente” (Foto: 20th Century Studios)

A inteligência político-social de John Ford, na década de 1940, está acima da maioria dos cineastas ‘politizados’ de hoje. Com uma cena simples ele expõe a contradição do sistema vigente. No flashback em que a família está sendo despejada, eles ameaçam o informante; este, por sua vez, diz que quem está expulsando-os são as companhias donas das propriedades, que também estão recebendo ordens dos bancos. “Devem ter um presidente. Alguém que sabe o que é uma espingarda”. Os moradores buscam a culpabilização de um indivíduo, porém, o problema está em toda a sistematização do país, Ford não cai na tentação de achar um vilão contra quem lutar, ao invés disso, aceita o futuro trágico e realista.

Na sequência, Muley relembra o momento em que sua moradia é destruída por um trator, dirigido por um conhecido, alguém da mesma classe do fazendeiro. Quando questionado o porquê de estar trabalhando contra o seu povo, a realidade recai sobre os personagens: ele é só mais um tentando salvar a sua família. O diretor sabe o que faz com a câmera para não dar a ideia errada. O jogo de luz e sombras e os contrastes são pouco dramáticos nesse momento, o contra-plongée não empodera aquele que está em cima da máquina, a ideia não é criar vilões. Neste sentido, a técnica é utilizada para contrastar o Muley antes e depois dos acontecimentos. A perda de seu teto, também lhe tirou a vitalidade, vagando como um fantasma pelos sobrados abandonados, do qual se acostumou a ver a vida inteira.

O pessimismo toma conta do filme, da sua temática, a maneira como a história se desenvolve, até como a mise-en-scène é pensada. A Fotografia, bem contrastada, evidencia os rostos tristes e desesperançosos, os infortúnios não são apenas inevitáveis, como também esperados pelos personagens. Chama a atenção o momento em que o avô da família morre e precisa ser enterrado no meio do nada, pois não tem dinheiro nem para dar dignidade aos seus mortos. Fica ainda mais melancólico quando a câmera dá um close na carta que será deixada no túmulo e o escritor muda a palavra “funeral” por “funerais”, pois ele crê que haverá ainda mais mortes.

Na foto está o quadro Os Retirantes de Cândido Portinari. O quadro mostra uma família com corpos desnutridos, rostos sem expressão e roupas surradas. O quadro passa a sensação de fome e seca.
“O alvo da minha pintura é o sentimento. Para mim, a técnica é meramente um meio. Porém um meio indispensável” (Foto: Guilherme Moraes)

Em 1944, Candido Portinari pintou Os Retirantes, um dos maiores quadros da pintura brasileira. A imagem representa uma família de emigrantes nordestinos que estão se mudando em busca de melhores condições de vida, fugindo da fome e da miséria. O pintor retratou memórias que tinha dos retirantes na sua infância, no contexto de grande seca na região nordeste, que levou milhares de pessoas a se deslocarem.

A Arte de Portinari conversa muito bem com a de John Ford. Apesar de não se saberem se uma influencia a outra, é possível encontrar paralelos, ainda que, em diferentes circunstâncias. As Vinhas da Ira estampa a desgraça dos Joad’s de maneira muito dramática, porém, pouco apelativa. O diretor evidencia os problemas e a crise, entretanto, não força algum sentimento no espectador. Deixa que ele consiga olhar para algo maior do que a destruição e entender o panorama geral do país. O pintor já faz de forma diferente, Os Retirantes é uma obra potente, tão dramática quanto o filme, todavia, é muito mais expressivo e impactante. Ambas expõem a destruição humana, contudo, o fazem em diferentes cenários e com intenções e maneiras distintas, afinal, são linguagens diferentes.

A desenvoltura de John Ford para aplicar as técnicas cinematográficas na Era de Ouro de Hollywood, dentro de um modelo de produção que tendia a suprimir a autoria, foi muito marcante em sua filmografia. Aliás, é admirável assistir um filme tão questionador conseguir espaço em meio ao Código Hays. Todavia, se engana quem pensa que seu legado se baseava em encontrar sua própria voz naquele contexto. Ainda hoje impressiona como ele discute a sociedade norte-americana de forma crítica, algo que inspirou e inspira cineastas como Clint Eastwood.

Na imagem está Tom. Ele está sozinho, no centro da imagem e olha para a direita, para algo fora do plano. Ele está se apoiando em um pedaço de madeira.
O filme faz parte da Era de Ouro de Hollywood (Foto: 20th Century Studios)

Grapes of Wrath não esconde suas opiniões políticas, não tem medo de incomodar, inclusive, faz com muita clareza. A abordagem que tem em relação a polícia é uma boa demonstração: o policial acompanha o empresário, com a função de fazer a manutenção do status quo. Enquanto, o homem de negócios se aproveita da fome e desemprego em massa para gerar empregos exploratórios, o homem da lei garante a segurança e integridade física do primeiro, contendo qualquer revolta.

Ademais, o longa consegue discutir conceitos apenas pela imagem, sem cair na armadilha de colocar monólogos ou conversas explicativas. Chegando à reta final, os Joad’s conseguem uma casa e um emprego que paga bem. No entanto, conforme o tempo passa, eles vão vendo a remuneração diminuir, por causa do número de pessoas que estão implorando por um trabalho. Ou seja, o salário desvaloriza e a pressão aumenta, de acordo com o aumento da procura.

As Vinhas da Ira entrou para a história do Cinema como um grande retrato da falência sistêmica. John Ford é um cineasta extraordinário, capaz de entender e representar os Estados Unidos e suas crises de maneira crítica, sem ser apelativo ou taxativo. Seus filmes não estão interessados em educar, mas sim em gerar debates sobre as profundas contradições do país em que vive. Todavia, não se pode pensar que fica apenas no discurso, Ford entende de cinema, sabe trabalhar ideias por imagens, e ninguém filma como ele.

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