Adriano Arrigo
Numa arena de octógono de MMA, o pastor-treinador Roberto Pedroso, mais conhecido como pastor Giraia, ajuda jovens que um dia já foram usuários de drogas a competirem pelo “Reborn Team”, o novo time de lutas marciais da Igreja Apostólica Renascer, tradicional instituição evangélica neopentecostal brasileira. “Muitas vezes você convida as pessoas a uma igreja e elas não vão, mas a uma noite de lutas elas vão”, conta o pastor à BBC Brasil.
Com sua ideia, Giraia está na crista da onda em juntar um esporte muito popular entre os jovens a sua crença. Ele faz parte de um fenômeno não tão recente em que canais a cabo transmitem conteúdo exclusivamente cristão, o funk gospel arrasta multidões e os pastores se assumem surfistas ao som de Coldplay. Vale tudo para vencer a guerra entre a fé e a arte feita pelo homem.
Em American Gods, o novo seriado exibido via stream pela Amazon, há um prognóstico dessa situação. A fé, tão disputada entre várias crenças, precisa sobreviver em detrimento da tecnologia, da mídia e da globalização. Os avatares que encarnam esses sintomas do capitalismo tardio – e, por isso, possuem vantagens sobre os deuses antigos, já que, afinal, estamos em 2017 – demonstram-se complacentes às entidades tradicionais. Afinal, quão onipresente é o Deus cristão perto do MMA ou do Google?
O livro de Neil Gaiman, escrito em 2001, parece ter sido, então, adaptado no momento exato. Porque não sabemos o que acontecerá com as religiões e muito menos a que ponto os reflexos do mundo altamente baseado em algoritmos, RV e Stories são capazes de desenhar novos caminhos. Ainda mais na mão dos mimados e arrogantes millenials, que na série são muito bem caracterizados no Technical Boy (Bruce Langley), o suposto deus da Internet.
Esse e outros deuses disputam Shadow Moon (Ricky Whittle), um americano comum que teve o azar de ser pego num roubo a um cassino. Após cumprir sua sentença e voltar a viver sua vida regular que tanto lhe agrada ao lado de sua esposa (Emily Browning) – cujo o sonho é suicidar-se usando inseticida –, o deus Quarta-Feira (impecavelmente interpretado por Ian McShane) aparece oferecendo-lhe trabalho. É a típica dualidade entre o real e o fantástico do mundo de Gaiman já vista em obras como Sandman e Coraline.
American Gods era inicialmente uma série para HBO, mas a ideia não foi em frente. Somente em 2014, o escritor se encontrou com o atual diretor da série, Bryan Fuller, responsável pelas injustiçadas Dead Like Me e Pushing Daises. Fuller, por encomenda do canal Starz, adaptou o livro de Gaiman que, por enquanto, representa apenas um terço da história.
Fuller e o produtor Michael Green (roteirista em Logan) atentaram-se a explicar o mínimo da mitologia da série para não parecer mais do mesmo. Porém, não estamos falando aqui de demonologias, deuses gregos ou humanos canonizados. Na série há espaço para o folclore, lendas e mitos de continentes não-europeus tendo seus paradigmas sendo subvertidos em retratos pouco ortodoxos. No capítulo “The Secret of Spoons”, um navio negreiro reza para Anansi, um semideus do folclore africano, que aparece e ordena a auto-destruição desse em prol de seus conterrâneos. Em “Head Full of Snow”, Ibrahim (Mousa Kraish) é um Ifriti – classe de gênios árabe – e motorista de táxi que encontra amor na solidão de Salim (Omid Abtahi), um vendedor ambulante vindo do Omã.
Com a necessária avalanche de séries em tratar de minorias, American Gods “faz o que tem ser feito”, como disse o diretor ao New York Times sobre a relevante diversidade étnica da série. Porém, por enquanto não há aprofundamentos sérios sobre como esses personagens serão tratados. Mas, levando em consideração o vício hollywoodiano de ocidentalizar ou embranquecer herois no cinema e na TV, é interessante ver, ao menos, um personagem não-branco como herói da série.
Tal qual Lilly e Lana Wachowski fizeram tão maravilhosamente no sci-fi Matrix, em American Gods temos os juízos e delírios de uma sociedade contraditória sendo dissecados a partir de um mundo fantasioso bem debaixo do nariz de seu protagonista. E, diferente da década passada, hoje temos a “sorte” de estar sob a era de Trump, o que, obviamente, proporciona conotações políticas à série, principalmente quando a maioria dos deuses apresentados até o momento são imigrantes americanos.
Tudo ainda está pairando sob pontas soltas em um emaranhado de histórias que não fazemos muito ideia de como se ligarão. Contudo, por detectar que o tecnocentrismo alterou drasticamente nossa visão de sagrado e, consequentemente e sem perceber, nossa fé, a proposta da série é de extrema importância no momento atual. Ainda mais quando os deuses precisam da credulidade dos humanos para sobreviver, seja através da captação de nossos dados virtuais ou, se conseguirem ainda, ortodoxamente por orações diárias. Se eles farão alianças como o pastor Giraia tem feito em sua igreja ou se haverá uma luta épica para despertar nossa fé, talvez os próximos capítulos de American Gods possam responder.
Cara, texto sensacional! <3