Lucas Ristow
Hot e Oreia, dupla de artistas mineiros que vem se mostrando revelação no cenário do rap nacional, continuam a desabrochar seu trabalho, tratando de assuntos sérios e necessários, mas com bom humor e criatividade, característica do duo. Crianças Selvagens, segundo disco dos artistas juntos em estúdio, é repleto de beats inovadores, versos marcantes e uma identidade sem igual. Nos fazendo imergir em um cenário repleto de sentimentos e debates, abordando educação sexual, respeito às religiões afro-brasileiras e às minorias.
Musicalmente aprimorado quando comparado ao trabalho anterior, o disco conta com direção musical de Daniel Ganjaman, produtor e engenheiro de áudio que assinou trabalhos de diversos artistas como o grupo BaianaSystem e o álbum póstumo em homenagem ao rapper Sabotage .A produção ficou na conta de Rafael Fantini, cantor, compositor e multi-instrumentista, e amigo de longa data da dupla, no passado os três faziam parte do grupo Filhos de Sandra.
As batidas ficaram à cargo de Coyote Beatz, Vhoor, Tropikilaz e Deekapz. Entre tantos nomes Coyote é o que vem a mais tempo trabalhando com o duo, desde o coletivo DV Tribo, onde se apresentavam com outros rappers renomados do cenário nacional, como Djonga, Clara Lima e FBC. O álbum ainda conta com samples de Caetano Veloso e Nelson Ned. Em entrevista, Hot e Oreia já diziam que sonhavam com uma participação de Caetano e conseguiram se aproximar dessa realidade com a faixa Presença.
O segundo álbum veio com a intenção de complementar o trabalho feito em 2019, buscando sintetizar seus sentimentos dentro da cidade e afirmando o que querem ser dentro dela. Rap de Massagem, primeiro álbum lançado pelo duo em julho do ano passado, abriu portas para uma estética e musicalidade nunca antes vista no rap nacional. O trabalho foi abraçado pelo público de forma acolhedora e livre de preconceitos, dando destaque as faixas Eu Vou e Estilo, que tratam de política e auto identificação de forma irreverente e bem humorada.
A abordagem com que tratam os temas em Crianças Selvagens não é o único fator que torna a obra de Hot e Oreia tão especial. A estética trazida nas roupas, sons e clipes fazem parte da composição dessa identidade singular do disco. Rap de Massagem e outros singles lançados anteriormente foram de extrema importância para o desenvolvimento dessa estética e abordagem trazida pela dupla, desconstruindo alguns valores conservadores do rap nacional, seja na fala ou vestimenta. O clipe de Eu Vou, que conta com a participação de Djonga e direção de Belle Melo e Vito Soares, foi premiado pelo Music Video Festival, em dezembro do ano passado e indicado neste mês de setembro à premiação MTV Miaw 2020, na categoria Clipão da Porra.
Ao explicar o conceito do novo disco, Hot diz que a criança selvagem é uma busca por um ser que talvez nunca consigam ser de fato, mas que se vêm obrigados a tentar ser, sempre alegres, coletivos e de olhos abertos às mudanças da civilização dura, triste e egocêntrica do atual momento em que vivemos. Oreia complementa dizendo que o disco conta sobre uma mudança íntima que vem acontecendo com eles em suas relações, e da abertura pra mudar-se, estar aberto, assim como os olhos de uma criança, prontos para aprender e desaprender o que já não faz sentido.
Assim como muitos rappers, os dois sagitarianos com ascendente em peixes começaram nas batalhas de rima. Mais especificamente no Duelo de MCs, em BH, debaixo dos viadutos da capital. O encontro não deu certo apenas no mapa astral, juntos fomentaram e incentivaram a cultura hip hop em Belo Horizonte, promovendo e participando de eventos e movimentos sociais. A dupla é munida de referências históricas, nomes consagrados da cultura brasileira, como Jorge Amado e Ariano Suassuna, autor de Auto da Compadecida, obra que influenciou diretamente a construção do clipe de Eu Vou. Ícones da música popular brasileira também são inspirações, como o já citado Caetano Veloso, além de Gilberto Gil e o grupo Novos Baianos.
A estética de Hot e Oreia sempre se aliou a criatividade, inovação e cultura brasileira, fugindo de qualquer padrão pré-estabelecido no rap. O grupo Filhos de Sandra, que Hot e Oreia participavam, é um exemplo dessa quebra de padrões e ecleticidade dentro do estilo, considerado um som que misturava rap, psicodelia e outros gêneros. Mesclando música, literatura, artes cênicas e a cultura adquirida e vivenciada até hoje nas ruas, vemos uma identidade única no trabalho feito pelo duo, carregada de figuras e valores importantes na contemporaneidade.
Papaia conseguiu sintetizar a essência do novo disco, um constante processo de desconstrução e aprendizado, nos fazendo questionar e refletir a todo instante. Essa foi a primeira faixa divulgada antes do lançamento oficial de Crianças Selvagens, contando com a participação do rapper Black Alien, referência de Hot, Oreia e inúmeros artistas nacionais.
A música aborda, de forma descontraída, criativa e com rimas afiadas, a importância da educação sexual e de ouvir seus parceiros. A letra traz inúmeras analogias, desmistificando diversos tabus presentes até hoje, desde os mais simples como o uso da camisinha e menstruação, até alguns pouco conversados como a divisão de tarefas domésticas, liberdade individual e comunicação dentro do sexo.
“Mamãe falou, papai tá paia
Vem devagar no meu mamão papaia
Devagarzin’, depois acelera
Não é assim, calma, espera”
Independente da forma com que seja encarada, com rostos mais sérios ou cheios de sorrisos, o trabalho de Hot e Oreia traz um valor essencial de que o rap existe e se forma a serviço da sociedade, em prol de algo muito maior que a música em si. Desde o começo do trabalho como dupla, eles se preocupam em tratar da masculinidade e dos padrões envoltos nela de forma didática e autêntica, conversando com o público, ensinando que roupas, cabelo e unhas, e sua liberdade de ser quem você é, não definem sexualidade ou gênero.
A preocupação política e social no trabalho da dupla é marcante em todo seu trabalho. Hot e Oreia se inspiram na conhecida guerra entre direita e esquerda no Brasil, onde relatam que seus parentes são reféns dessa estrutura corrompida, nas manifestações e militâncias, onde não importa seu lado, governantes não representam o povo há muito tempo.
O universo de Crianças Selvagens é vasto, e é possível identificar que cada faixa do disco possui uma carga sentimental distinta, um novo questionamento, como se fossem outros novos álbuns. É um trabalho completo, que vai de ponta a ponta nos debates já levantados por eles em outros momentos.
Hot e Oreia trabalham a autoestima, realização pessoal e identificação em Vírus e Juro$, como nos trechos “Hoje eu me sinto bem juro/ Tenho grana já não tô duro/ Mas se não tivesse, também taria bem” e “Hoje eles tão de short curto/ Pintaram a unha mano eu juro”. Iniciado no candomblé, Hot representa sua relação com a religiosidade em Oxossi, que conta com versos fortes e expressivos, podendo ser sentidos mesmo por aqueles que não seguem a religião.
O amor, a sexualidade e relacionamentos têm seu espaço em faixas ‘quentes’ como Papaia, Ela com P e Presença, essa última com samples de Caetano Veloso, “Eu sou seu você sabe, na minha cama te cabe/ Fica quente minha base, só com a tua presença”. E com certeza política e mais política não faltariam, em Domingo e Saiu o Sol encontramos a insatisfação e as indagações de Hot e Oreia à respeito do governo e sua conjuntura atual, conservadora e ultrapassada.
O aspecto trazido por Hot e Oreia nesse novo trabalho não é surpresa para aqueles que acompanham o trabalho dos dois há algum tempo. Eles constroem cada faixa lançada de forma única, buscando novas e específicas referências a fim de trazer algo singular para o público. Seja uma sensação de pertencimento, algo que cada vez mais é discutido e procurado, ou o sentimento de repulsa, causado pelas velhas políticas e valores conservadores reproduzidos por determinados grupos, representado de forma cômica nos clipes e letras.
Crianças Selvagens traduz essa identidade muito bem, com intenção de nos colocar para pensar e refletir em como estamos nos portando perante nossos semelhantes. Nos fazer encontrar nosso espaço em sociedade, algo que vai muito além da música e do hip hop, sendo algo que diretamente nos afeta e transforma como comunidade.