Egberto Santana Nunes
Apropriação cultural, racismo institucional, a solidão da mulher negra, relacionamentos inter-raciais. Podemos dizer que, pelo menos nos últimos 20 anos, nunca essas questões foram tão debatidas e tiradas do tabu quanto tem sido agora. E é claro que tais pautas seriam usadas – como sempre foram – pela sétima arte. Os últimos bons exemplos foram Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) que debate a busca por identidade enquanto homem negro e gay e o documentário indicado ao Oscar Eu Não Sou Seu Negro, que conta a história de James Baldwin a partir de um manuscrito inacabado do escritor, tal como a trajetória de luta de Malcolm X, Medgar Evers e Martin Luther King Jr., ativistas pelos direitos dos negros nos EUA. Agora o mais novo lançamento nos cinemas americanos inova ao debater o racismo disfarçado e os relacionamentos inter-raciais por uma ótica diferente, o terror.
Em Corra! (Get Out), Chris (Daniel Kaluuya) é um jovem fotógrafo negro que está prestes a passar um final de semana com sua namorada branca, Rose (Allison Williams) na casa dos pais dela. Mas o que poderia ser uma recepção extremamente amorosa por parte da família branca de classe média de Rose, acaba sendo um pesadelo desesperador para Chris. O diretor e roteirista Jordan Peele, no entanto, não tem muitas experiências com filmes de terror, sendo este sua estreia tanto na direção quanto no gênero, já que o seu campo de trabalho sempre foi o ramo das comédias, especialmente trabalhando no meio do Stand Up.
Mas a ideia do filme vem do humor. Peele revelou em entrevista ao Entertainment Weekly que a inspiração para a trama e título do filme surgiram de um show de comédia de Eddie Murphy em que o ator fala da experiência de conhecer os pais de uma namorada branca. Com essa trama que facilmente poderia ter saído também da cabeça dos irmãos Wayans, o diretor aproveita para retratar o racismo estrutural na sociedade americana e como ele pode se tornar um pesadelo para os afrodescendentes americanos.
Conhecendo o histórico do diretor, é possível compreender porque, em certos momentos, há a garantia de boas risadas. Usando o segurança do aeroporto Rod Williams (LilRel Howery), amigo de Chris, como alívio cômico, o personagem distrai com piadas relativas à situação em que o amigo se encontra, sem perder a tensão original da obra.
Assim, o “hype” do filme já pode ser visto em seu trailer, por conter terror e um pano de fundo que lida com o racismo. Em contrapartida, esse foi mais um daqueles trailers em que a prévia conta o todo, o que foi extremamente prejudicial, já que as cenas mostradas que prometem ser impactantes acabam perdendo o sentido no longa. Logo, o longa perde em não ter os sustos que promete. Ainda assim, esse artifício não se encontra necessariamente em causar medo ou ainda fazer com que o espectador não durma de noite; a ideia está em colocar medo em sua representação, nos fazendo pensar nos pormenores da cena em si, pois por mais bizarra e extrapolada que possa ser a experiência de Chris, devemos lembrar que isso nada mais é do que uma metáfora para o racismo cotidiano.
Mais do que causar medo, o que acontece é o espectador se sentir desconfortável pelo “show de horrores” demonstrado pelos personagens nas cenas de maior impacto do filme. Em uma delas, é realizada uma festa na casa dos pais da garota em que há apenas um negro dentre dezenas de brancos ricos. Lá, Chris é alvo de comentários que para os olhares brancos despercebidos tratam-se de elogios, mas não passam de preconceitos raciais implícitos. Sua genética “melhor”, “o preto está na moda” e negros são necessariamente diferentes no sexo e no físico são alguns dos comentários que o protagonista tem que ouvir. Racismo, pois não é a etnia de uma pessoa que vai decidir se ela será boa ou ruim nisso ou naquilo.
Nessa cena, o diretor ao mesmo tempo revela o conflito na trama e coloca a marca principal de realidade durante o longa, não sendo, nesse caso, nem uma metáfora nem uma analogia, e sim algo em que podemos identificar a realidade nua e crua da nossa sociedade. Por coincidência ou não, o filme foi rodado no Alabama, um estado americano fortemente marcado por raízes racistas.
Além de acertar nos pequenos detalhes e diálogos, Jordan Peele revela ter uma boa mão também direção. Em Corra!, há precisos takes longos e distantes, já clássicos do gênero, que adicionam um toque de tensão à obra. Para somar, temos a excelente atuação de Daniel Kaluuya, com faces de desespero que conseguem fazer o espectador entender ou ao menos compreender não só o que seu personagem, mas toda uma população negra americana sente. E se essa era a intenção do diretor, pontos para Peele.
Uma trilha sonora excelente, composta por Michael Abels, acompanha a abertura do longa, com direito à música “Redbone” do rapper Childish Gambino tocando de fundo enquanto o título do filme aparece em meio a uma filmagem rápida das árvores da estrada e fotografias tiradas pelo protagonista. Uma sequência digna para o início do filme, onde o clima sombrio ainda não foi estabelecido. Ademais, o trabalho do diretor de fotografia Toby Oliver merece destaque com cenas bem definidas com luzes frias sobre os personagens que garantem o tom sombrio do filme.
Mas por mais que o diretor tenha acertado em retratar o racismo no longa como a “ferramenta” e o branco como “o vilão do filme de terror”, ele peca em pontos do desenvolvimento do filme. Se por um lado ele acerta em realizar tomadas de longe com uma visão que reflete todo o cenário e em momentos específicos da obra, por outro ele não convence ao colocar a hipnose como motivo quase central do longa. Não só isso, a instituição chefiada pela família da namorada é apresentada muito rapidamente, sem muitas explicações, e desemboca numa resolução de conflito rápida demais para finalizar com cenas de violência e revolta do protagonista.
Porém, nenhum desses miúdos comprometeu seu sucesso. Corra! conseguiu alcançar merecidas marcas na bilheteria, sendo o filme de maior arrecadação, 162.8 milhões de dólares, dirigido por um cineasta negro ao ser lançado em versão caseira. Como se não bastasse, Peele conseguiu o pódio de filme mais rentável nas bilheterias por um roteiro original de um diretor e roteirista, batendo o roteiro original de “A Bruxa de Blair”, em 1999.
Por fim, além de estar presente na história dos recordes cinematográficos por algum tempo, é possível dizer que Corra! entra também na lista de filmes necessários dos últimos tempos. Lançado em uma época tão propícia em que o debate sobre as questões raciais, felizmente, está cada vez mais caloroso, o diretor conseguiu juntar um tema tão difícil e urgente a um gênero que sempre é aclamado pelo grande público nas salas de cinema, além do fato de somar um ator de peso e conhecido pelo público (Kaluuya repete o bom trabalho no segundo episódio da primeira temporada de Black Mirror). Para fazer o público pensar sobre o racismo escondido de todos nós, inserindo nos diálogos diversas falas minuciosamente preconceituosas que nem todos se dão conta do perigo inserido, Corra! é mais do que recomendado, é obrigatório.