Leonardo Teixeira
Uma sirene corta a noite, enquanto carros buzinam no que parece ser uma rua movimentada. Mas não é só o ruído urbano que se ouve. Vem vindo um compasso, seco e sintetizado, que se aproxima aos poucos. Logo, a cidade é engolida pela batida eletrônica. Estamos na pista de dança. É assim que é introduzida I Love New York, faixa 5 do décimo disco de estúdio de Madonna, Confessions on a Dance Floor (2005). A música homenageia não só a cidade que acolheu a aspirante a dançarina, quando ali ela desembarcou – com apenas 35 dólares no bolso, reza a lenda -, mas também o tipo de estado de espírito noturno e eufórico que resiste nas ruas e explode sob a luz de estrobo.
Madonna nasceu na pista. A boate Danceteria, onde ela se lançou como cantora solo, era um palácio underground no início dos anos 80, em Nova York. Lá, sob o globo de espelhos, ela dançava noite adentro ao som de disco, hip-hop, ritmos latinos e mais uma mistureba de estilos, numa bolha de arte e diversidade que inspiraria toda sua carreira. A noite como esse lugar seguro, de autoafirmação, é ponto de partida do disco, que completa hoje 15 anos na cena.
Logo de cara, fica claro que o álbum foi pensado como um set de DJ, pelo desembocar em cascata das faixas umas sobre as outras. E que forma melhor de abrir a pista do que Hung Up? Seu conceito nasceu de um projeto de Madonna com o diretor Luc Besson, que pedia um som que lembrasse “ABBA on drugs”. O roteiro foi engavetado, mas a música era boa demais para ser descartada. Stuart Price, jovem produtor que a cantora já conhecia, ficou encarregado da produção, que é construída sobre uma base de sintetizador, brilhantemente sampleada de Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight), do grupo sueco ABBA.
Price, que assina com dona Ciccone grande parte do LP, alterou o tom, picotou e brincou com o trecho, incluindo também uma linha de baixo que trouxe a faixa para o século XXI. Nascia ali uma das pérolas da carreira tetragenária de Madonna.
Com direito a collant cor-de-rosa, cabelo à Farrah Fawcett e rádio boombox no ombro, a canção talvez seja a maior referência direta à discoteca setentista do registro. Outro destaque, a hipnotizante Future Lovers, reaproveita um clássico de Donna Summer (ou a melhor canção pop já feita), mas o olhar aqui é futurístico. “Não controlados pelo tempo/Amantes do futuro brilham/Pela eternidade/Num mundo livre”, Madonna idealiza, evocando a mesmo sentimento utópico de comunidade e inclusão que nomes como a própria Summer, Sylvester e Earth, Wind & Fire proporcionaram a toda uma geração.
A tracklist segue, bebendo muito mais da ebulição libertadora dessa era, do que o som propriamente dito. Na verdade, o que mais parece orientar a sonoridade do registro são os movimentos pós-disco, como a house music e o synthpop.
Get Together, por exemplo, remonta a trabalhos da dupla de DJs Daft Punk. A vibração aqui ganha aura ritualística, quase religiosa. Como uma bíblia, Confessions está aberto a diversas interpretações, e a faixa exemplifica isso com brilhantismo. A letra pode ser sobre um amor profundo, uma paixão que perece ao amanhecer, solidão ou tudo junto. É essa a graça da pista de dança. Entre os corpos em movimento, não cabem longos diálogos, fica difícil da gente se ouvir. Confissões flutuam no ar, num universo em que certezas nem são necessárias.
Mas nem só de escapismo é feita a noite. A Rainha nos lembra que espaços como a Danceteria eram, principalmente para pessoas LGBTQIA+ e não-brancas, os únicos onde se podia viver plenamente seus conflitos emocionais e afetivos. Então chorar as pitangas faz parte da experiência também. Triste e elegantérrima, Forbidden Love questiona as barreiras invisíveis que nos impedem de amar alguém em força total. A versão da faixa para a turnê mundial do disco – que merece um texto por si só – vai mais fundo, iniciando um conversa pesada e necessária sobre o conflito israelo-palestino. É de arrepiar.
Outro momento de confissão, Jump relembra a chegada de Madonna em Nova York em 1978, e sua procura por independência. “Eu consigo sozinha, minhas irmãs e eu”, ela repete sob camadas e camadas de sintetizadores, reforçando a importância da família que a gente escolhe nesse processo de crescimento. A vastidão eletrônica faz referência a trabalhos de outra dupla, os Pet Shop Boys.
Em abril de 2006, a cantora foi uma das headliners da sétima edição do Coachella. Mas a surpresa é que, apesar de ser o principal nome da edição, ela não ocupou o palco principal do evento. Seu show aconteceu na tenda eletrônica, que quase veio abaixo com os primeiros tic tacs de Hung Up. Por sua vez, a canção que Madonna estreou em sua primeira performance solo lá na boate Danceteria, Everybody, fechou a apresentação, numa versão remixada por Stuart Price. É o culto à pista de dança atravessando gerações, amém.
Discoteca e suas adjacências seriam revisitadas por mais um monte de gente nos anos seguintes. Em 2020, por exemplo, o espírito da época parece pedir pelo tipo de música que une as pessoas num lugar de acolhimento, e muitos hits recentes adotam essa referência. Sonoramente, quem mais se banhou em águas madônnicas é Dua Lipa, com o bem-sucedido Future Nostalgia. Mas o impacto vai mais longe.
Temos aqui o disco com o qual todos os novos trabalhos de Madonna sempre serão comparados. Apesar disso, Confessions on a Dance Floor não tem intenção alguma de reinventar uma época. O que acontece aqui é uma conversa sendo passada para frente, referências em renovação, já que a utopia da discoteca não pode morrer. 15 anos depois, esse álbum ainda recria um espaço seguro, de vivência e amadurecimento para quem quiser dançar junto. Esse lugar nunca perderá seu brilho.