Robôs gigantes salvaram o Cinema com o poder da amizade em Círculo de Fogo

Imagem de divulgação do filme “Círculo de Fogo” (2013). Em um mar turbulento e céu fechado, quatro robôs gigantes se preparam para lutar. A câmera está inclinada para cima, mostrando a grandiosidade das máquinas. no canto inferior esquerdo há um navio tentando escapar das ondas geradas pelos robôs. Mais à esquerda está o Jaeger de três braços “Crimson Typhoon”, distante porém correndo em direção à câmera. Sua lataria é vermelha e ele possui um único olho brilhante. Ao centro e mais a frente está “Gypsy Danger”, com armadura azulada e um centro de energia que brilha vermelho em seu peito. Dois helicópteros a rodeiam. À direita de Gypsy está “Eureka Striker”, com os braços robóticos armados com duas gigantes facas de duas lâminas e lataria prata metálica. Por fim, mais distante à direita está “Cherno Alpha”, de cor verde e cabeça semelhante a uma torre.
“A sorte favorece os corajosos, cara” (Foto: Warner Bros. Pictures)

Larissa Mateus

Sempre pensávamos que vida alienígena viria das estrelas, mas veio das profundezas do mar“, explica o protagonista Rayleigh nos primeiros segundos do filme sobre a reviravolta que seu mundo sofreu, cuja consequência foi uma guerra contra seres de fora do planeta que durou mais de dez anos. Círculo de Fogo (2013) constrói um plano de fundo que se leva extremamente a sério, mas lava seus elementos realistas com as verdades de sua narrativa: a pura nostalgia e a total admiração por robôs gigantes batendo em alienígenas ainda maiores. 

Esse clássico recente da ficção científica completou uma década em 2023 e envelheceu como vinho devido ao carinho do diretor, Guillermo Del Toro. O cuidado e a afeição tanto de Del Toro quanto de seu time de produção transparece em cada cena, e demonstra uma sincera homenagem às animações japonesas de mechas, como Evangelion (1997), e aos clássicos do gênero Kaiju, como Godzilla (1954). O típico romantismo das obras do diretor, evidenciado em A Forma da Água (2017), não está presente em sua literalidade – ou literariedade – aqui. Sua paixão, porém, ainda se manifesta nas características irreverentes do gênero, a exemplo do próprio sentimentalismo que constrói o caráter nostálgico do filme. 

Gravação de uma cena dentro de um Jaeger em Círculo de Fogo (2013). Em frente a uma tela verde está construído um cenário que simula o ambiente dentro de um robô gigante, enquadrando a foto com engrenagens e pistões vermelho-brilhantes simetricamente em ambos os lados. Ao centro está o painel de controle, e duas pessoas ao seu lado em pé, porém conectadas nos braços, pernas e capacetes ao resto da maquinaria. Suas armaduras e equipamentos são cinzentos, e os botões no painel de controle são amarelos e contam com duas telas azuis.
Além dos efeitos digitais de grande escala, todas as cenas dentro dos Jaegers tiveram efeitos práticos (Foto: Roadshow Films)

Um dos principais elementos que demonstra a profundidade de pensamento do diretor é a construção do mundo. A sociedade retratada em Círculo de Fogo é complexa e interessantíssima, mesmo que seja apenas para a ambientação da narrativa, e não para o próprio enredo. Cada minúcia de um planeta em guerra contra alienígenas colonizadores foi pensada: desde itens, como uma nova arquitetura para proteger as cidades desses gigantes, novas alianças políticas entre países e até uma crise ambiental causada pelo sangue extraterrestre derramado. O resultado é um mundo nítido e vívido que, embora distópico, desperta a vontade de vivenciá-lo em toda a sua tatilidade. 

Apesar de colorido e bem construído, a cinematografia deixa a desejar, por vezes, caindo em um uncanny valley na gradação de cores. O filme é gravado de maneira inteiramente digital, o que faz os tons de preto serem extremamente profundos e o contraste entre as cores seja forte demais em alguns enquadramentos. O objetivo é claro: facilitar ainda mais a conexão do filme às animações japonesas – porém, em um filme live action, essa saturação de cores pode destoar demais da realidade pintada. O principal exemplo é o do palácio dourado do criminoso Hannibal Chau, interpretado pelo sempre ilustre e caricato Ron Perlman. A cena é dirigida com maestria, mas a dor de cabeça causada pela combinação enojante de verde e amarelo, não tanto.

Cena de Hannibal Chau em seu castelo do crime no filme Círculo de Fogo (2013). Chau é interpretado por Ron Pearlman, um homem branco de cabelos e barba brancos e porte médio. Ele traja óculos escuros e um terno de três peças vermelho, de o blazer e calça bordô com detalhes intrincados e colete vermelho vívido com uma corrente dourada acoplada, além de uma gravata também dourada. Ele está com os dois braços para cima e com as mãos abertas, com uma expressão séria no rosto. Ao fundo estão prateleiras cheias de jarras brilhantes verdes e amarelas com órgãos amorfos de Kaiju, enquadradas entre dois armários de madeira de gavetas quadradas.
Ron Perlman interpreta Hannibal Chau, um traficante de órgãos de Kaiju (Foto: Warner Bros. Pictures)

Dentro desse universo extremamente detalhado, a narrativa se contrapõe em sua simplicidade, tendo sua trama focada apenas em entregar a ação mais bombástica possível. O roteiro de Travis Beacham e Guillermo del Toro, inclusive, perdeu um pouco de seu impacto com a idade: o futuro distópico da década de 2020 mostrado em Círculo de Fogo virou piada agora que enfrentamos coisas talvez piores. Em 2013, a maior ameaça imaginada do então futuro próximo eram as consequências sociopolíticas de invasões extraterrestres. No verdadeiro 2020, a humanidade foi dizimada por algo mais próximo de um filme de zumbis do que de uma espalhafatosa guerra entre mechas e monstros gigantes.

A trama pode ter perdido certa essência com o passar dos anos, mas sua construção continua sendo ideal para o produto que deseja ser. A lógica do longa-metragem trabalha com o contratempo de uma história despretensiosa, enquanto investe em todos os outros aspectos de produção para elevá-la a uma ficção científica inesquecível.

GIF do filme Círculo de Fogo (2013). O Mecha gigante Gypsy Danger está em centro, e acerta o punho esquerdo em sua palma direita, enquanto quatro pessoas, identificadas apenas como silhuetas de costas à câmera, o assistem de uma plataforma ao nível do peito do robô. Danger possui um visor dourado, e sua lataria é cinza escura. Em seu peito está seu gerador de energia, uma gigante e giradora válvula de escape que brilha laranja. O fundo mostra o galpão repleto de holofotes em que os Jaegers residem.
A melhor arma contra um Kaiju é um soco bem dado (GIF: Warner Bros. Pictures)

Um dos principais elementos mais enaltecedores do filme é a atuação, novamente sendo mais um fator responsável por transformar o roteiro em um empolgante espetáculo. As personagens estereotipadas ganham uma nova dimensão com a clara paixão dos atores neste projeto. Idris Elba como Stacker Pentecost, por exemplo, representa o típico e estóico general com um coração de ouro, e entrega o melhor discurso inspirador de fim de mundo da última década. O personagem que, até então, não havia expressado abertamente a profundidade de seu apreço pelas pessoas à sua volta, traz na fala a esperança de alguém que, mesmo nas mais sombrias circunstâncias, encontra a solução de todas as angústias em confiar na comunidade que construiu. 

Outros destaques são Burn Gorman e Charlie Day, que dão vida, respectivamente, ao matemático Hermann Gottlieb e ao xenobiólogo e roqueiro Newton “Newt” Geiszler. Os cientistas vivem um relacionamento conturbado, trazendo um humor indispensável para dar leveza à tensão constante da história. Entre suas disputas filosóficas e briguinhas infantis, o par de inimigos com tensão homoerótica palpável descobre o quanto verdadeiramente se importam um com o outro, e, trabalhando juntos, conseguem unir a sistemática matemática com a fluidez da biologia para cancelarem o apocalipse. 

GIF do filme Círculo de Fogo (2013). Em frente à um fundo desfocado, repleto de luzes futuristas, os cientistas Hermann Gottlieb e Newton Geiszler sorriem com alívio. Newton é um homem branco, de cabelos curtos e castanhos, que veste um óculos preto, uma jaqueta de couro, blusa branca e uma gravata desatada. Ele está machucado, com um ferimento na testa e na bochecha, e seu sangue mancha a gola da blusa. Newton está com a mão no ombro de Hermann, chacoalhando-o levemente. Hermann também é um homem branco, mais alto, e veste camiseta branca, colete de tricô e um paletó preto. Seu cabelo é preto e está suado, grudado em sua testa.
Apesar de suas diferenças, Hermann e Newt reconhecem a profundidade e importância de sua conexão para combater o fim do mundo (GIF: Warner Bros. Pictures)

Para além das minúcias, o prato principal desse banquete visual é a ação temperada pela Música. A trilha sonora de Ramin Djawadi transforma o impacto de cada soco em algo sentido não só pela gigante massa dos monstros dentro do filme, mas também pela própria plateia. Aliás, a composição contém um toque de rock’n’roll dentro das cordas mais tradicionais e inspiradoras, além de batidas pesadas e elementos eletrônicos típicos de composições mais futurísticas. A ação torna-se visceral no momento em que soma-se à violência analógica dos robôs gigantes, os Jaegers, quando atingem um Kaiju desprevenido.

Os designs dos mechas são perfeitamente distinguíveis entre si, cheios de personalidade e detalhes individualizadores que conseguem transformar aquelas máquinas gigantes em seus próprios personagens. Os Jaegers mais novos, como o australiano Striker Eureka, têm designs limpos e minimalistas, dando a impressão de leveza e agilidade. Os mais antigos, por sua vez, como o protagonista Gypsy Danger e o russo Cherno Alpha, contam com características no âmbito do steampunk, dado o brilho de energia futurística fluindo entre canos, polias e pistões antiquados visíveis. 

O desenho autômato desses robôs preservou de maneira espetacular os efeitos especiais do filme, aparentando ser bem mais palpáveis que muitos atualmente, principalmente em sua violência. A brutalidade é física em todos os aspectos, já que a tecnologia na história do longa não é futurista o suficiente para impedir o fato da melhor solução para combater um alienígena gigante ser uma espada bem enfiada no coração ou um chute nas costelas.

Círculo de Fogo demonstrou que é possível, sim, fazer um filme de qualidade com uma premissa boba, desde que seja construído com todo o amor e dedicação de uma equipe motivada a entender nuances da ficção científica. Em seus dez anos de história, o longa trouxe vitalidade a um gênero mais reservado às animações, e provou que um apreço genuíno dentro da produção de um filme é o suficiente para cultivar um grupo de fãs dedicados. Esses que nunca esquecerão como a conexão entre as pessoas é o suficiente para pilotar um robô de guerra e impedir o apocalipse. 

Deixe uma resposta