Larissa Mateus
“Sempre pensávamos que vida alienígena viria das estrelas, mas veio das profundezas do mar“, explica o protagonista Rayleigh nos primeiros segundos do filme sobre a reviravolta que seu mundo sofreu, cuja consequência foi uma guerra contra seres de fora do planeta que durou mais de dez anos. Círculo de Fogo (2013) constrói um plano de fundo que se leva extremamente a sério, mas lava seus elementos realistas com as verdades de sua narrativa: a pura nostalgia e a total admiração por robôs gigantes batendo em alienígenas ainda maiores.
Esse clássico recente da ficção científica completou uma década em 2023 e envelheceu como vinho devido ao carinho do diretor, Guillermo Del Toro. O cuidado e a afeição tanto de Del Toro quanto de seu time de produção transparece em cada cena, e demonstra uma sincera homenagem às animações japonesas de mechas, como Evangelion (1997), e aos clássicos do gênero Kaiju, como Godzilla (1954). O típico romantismo das obras do diretor, evidenciado em A Forma da Água (2017), não está presente em sua literalidade – ou literariedade – aqui. Sua paixão, porém, ainda se manifesta nas características irreverentes do gênero, a exemplo do próprio sentimentalismo que constrói o caráter nostálgico do filme.
Um dos principais elementos que demonstra a profundidade de pensamento do diretor é a construção do mundo. A sociedade retratada em Círculo de Fogo é complexa e interessantíssima, mesmo que seja apenas para a ambientação da narrativa, e não para o próprio enredo. Cada minúcia de um planeta em guerra contra alienígenas colonizadores foi pensada: desde itens, como uma nova arquitetura para proteger as cidades desses gigantes, novas alianças políticas entre países e até uma crise ambiental causada pelo sangue extraterrestre derramado. O resultado é um mundo nítido e vívido que, embora distópico, desperta a vontade de vivenciá-lo em toda a sua tatilidade.
Apesar de colorido e bem construído, a cinematografia deixa a desejar, por vezes, caindo em um uncanny valley na gradação de cores. O filme é gravado de maneira inteiramente digital, o que faz os tons de preto serem extremamente profundos e o contraste entre as cores seja forte demais em alguns enquadramentos. O objetivo é claro: facilitar ainda mais a conexão do filme às animações japonesas – porém, em um filme live action, essa saturação de cores pode destoar demais da realidade pintada. O principal exemplo é o do palácio dourado do criminoso Hannibal Chau, interpretado pelo sempre ilustre e caricato Ron Perlman. A cena é dirigida com maestria, mas a dor de cabeça causada pela combinação enojante de verde e amarelo, não tanto.
Dentro desse universo extremamente detalhado, a narrativa se contrapõe em sua simplicidade, tendo sua trama focada apenas em entregar a ação mais bombástica possível. O roteiro de Travis Beacham e Guillermo del Toro, inclusive, perdeu um pouco de seu impacto com a idade: o futuro distópico da década de 2020 mostrado em Círculo de Fogo virou piada agora que enfrentamos coisas talvez piores. Em 2013, a maior ameaça imaginada do então futuro próximo eram as consequências sociopolíticas de invasões extraterrestres. No verdadeiro 2020, a humanidade foi dizimada por algo mais próximo de um filme de zumbis do que de uma espalhafatosa guerra entre mechas e monstros gigantes.
A trama pode ter perdido certa essência com o passar dos anos, mas sua construção continua sendo ideal para o produto que deseja ser. A lógica do longa-metragem trabalha com o contratempo de uma história despretensiosa, enquanto investe em todos os outros aspectos de produção para elevá-la a uma ficção científica inesquecível.
Um dos principais elementos mais enaltecedores do filme é a atuação, novamente sendo mais um fator responsável por transformar o roteiro em um empolgante espetáculo. As personagens estereotipadas ganham uma nova dimensão com a clara paixão dos atores neste projeto. Idris Elba como Stacker Pentecost, por exemplo, representa o típico e estóico general com um coração de ouro, e entrega o melhor discurso inspirador de fim de mundo da última década. O personagem que, até então, não havia expressado abertamente a profundidade de seu apreço pelas pessoas à sua volta, traz na fala a esperança de alguém que, mesmo nas mais sombrias circunstâncias, encontra a solução de todas as angústias em confiar na comunidade que construiu.
Outros destaques são Burn Gorman e Charlie Day, que dão vida, respectivamente, ao matemático Hermann Gottlieb e ao xenobiólogo e roqueiro Newton “Newt” Geiszler. Os cientistas vivem um relacionamento conturbado, trazendo um humor indispensável para dar leveza à tensão constante da história. Entre suas disputas filosóficas e briguinhas infantis, o par de inimigos com tensão homoerótica palpável descobre o quanto verdadeiramente se importam um com o outro, e, trabalhando juntos, conseguem unir a sistemática matemática com a fluidez da biologia para cancelarem o apocalipse.
Para além das minúcias, o prato principal desse banquete visual é a ação temperada pela Música. A trilha sonora de Ramin Djawadi transforma o impacto de cada soco em algo sentido não só pela gigante massa dos monstros dentro do filme, mas também pela própria plateia. Aliás, a composição contém um toque de rock’n’roll dentro das cordas mais tradicionais e inspiradoras, além de batidas pesadas e elementos eletrônicos típicos de composições mais futurísticas. A ação torna-se visceral no momento em que soma-se à violência analógica dos robôs gigantes, os Jaegers, quando atingem um Kaiju desprevenido.
Os designs dos mechas são perfeitamente distinguíveis entre si, cheios de personalidade e detalhes individualizadores que conseguem transformar aquelas máquinas gigantes em seus próprios personagens. Os Jaegers mais novos, como o australiano Striker Eureka, têm designs limpos e minimalistas, dando a impressão de leveza e agilidade. Os mais antigos, por sua vez, como o protagonista Gypsy Danger e o russo Cherno Alpha, contam com características no âmbito do steampunk, dado o brilho de energia futurística fluindo entre canos, polias e pistões antiquados visíveis.
O desenho autômato desses robôs preservou de maneira espetacular os efeitos especiais do filme, aparentando ser bem mais palpáveis que muitos atualmente, principalmente em sua violência. A brutalidade é física em todos os aspectos, já que a tecnologia na história do longa não é futurista o suficiente para impedir o fato da melhor solução para combater um alienígena gigante ser uma espada bem enfiada no coração ou um chute nas costelas.
Círculo de Fogo demonstrou que é possível, sim, fazer um filme de qualidade com uma premissa boba, desde que seja construído com todo o amor e dedicação de uma equipe motivada a entender nuances da ficção científica. Em seus dez anos de história, o longa trouxe vitalidade a um gênero mais reservado às animações, e provou que um apreço genuíno dentro da produção de um filme é o suficiente para cultivar um grupo de fãs dedicados. Esses que nunca esquecerão como a conexão entre as pessoas é o suficiente para pilotar um robô de guerra e impedir o apocalipse.