Caroline Campos
Ainda era cedo, amor, quando, em 30 de novembro de 1980, nos deixava Angenor de Oliveira, o nosso Cartola. Com apenas 72 anos, a maior referência do samba brasileiro e fundador da Estação Primeira de Mangueira perdeu a batalha contra o câncer, deixando apenas quatro discos-solo e um legado repleto de poesia. “Cartola não existiu. Cartola foi um sonho bom que a gente teve”, reflete Nelson Sargento, parceiro musical do cantor. E, mesmo 40 anos depois do seu falecimento, o sonho ainda vive fresco na memória da Música Popular Brasileira, como se nunca tivéssemos acordado.
Nascido em 11 de outubro de 1908, Angenor era para ser, na verdade, Agenor, mas o escrivão adicionou uma letra a mais e o erro ficou consolidado – erro esse que o sambista só descobriu com seus 56 anos, ao se casar pela segunda vez. Filho de Sebastião Joaquim de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira, ele precisou se virar como pôde depois da morte da mãe e abandono do pai. Só se tornou Cartola mesmo aos 15 anos, quando trabalhava com construção civil e usava um charmoso chapéu-coco na cabeça para evitar os respingos de cimento. O apelido pegou, e Cartola, hoje, é sinônimo de genialidade.
Angenor era tricolor carioca de coração e, mesmo só estudando até o primário, dominava as nuances da Língua Portuguesa com maestria. Era um menino de apenas 11 anos quando se mudou para o Morro da Mangueira e sua bela alvorada, e, lá, foi apresentado para as rodas de samba, cultos de deuses afro e a boemia da travessa Buraco Quente. Foi Carlos Cachaça quem o instruiu pelas vielas mangueirenses e, ao lado dele, Cartola e outras figuras da comunidade fundaram o Bloco dos Arengueiros, que viria a florescer como Estação Primeira de Mangueira. Verde e rosa em mãos, nasceu a escola de samba em 1928. Somos da Estação Primeira, salve o povo de Mangueira!
Mesmo levando a vida a sorrir, sua trajetória foi tumultuada. Pulava de emprego para emprego, vendia composições à preço de banana. Perdeu a primeira esposa, Dona Deolinda, para um infarto e sofreu com a rosácea no nariz, que, no futuro, deixou uma escura marca na região, tornando-se uma de suas características. Viveu em um limbo onde era esquecido artisticamente como compositor, foi menosprezado pela escola de seu coração e, afundado na bebida, foi-se embora da Mangueira, dado até como morto pelos amigos – até ser redescoberto pelo jornalista Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte-Preta.
Finda a tempestade, o sol nascerá. Mas, por sol, dizemos Euzébia Silva do Nascimento – Dona Zica, para os conhecidos. A mulher surgiu com a força e a bondade que o poeta das rosas precisava, ajudando-o a se reerguer e voltar para a Mangueira. A Primeira-Dama do samba, falecida em 2003, foi a matriarca da Mangueira e uma das principais lideranças femininas no morro. Cozinheira de primeira linha, idealizou e fundou, ao lado do companheiro, o que foi a primeira casa de samba do Rio de Janeiro: o Zicartola. Em apenas 20 meses de existência, de 1963 a 1965, o restaurante abrigou os principais nomes do samba e da juventude revolucionária durante os primeiros passos da ditadura militar.
Localizado na Rua da Carioca, número 53, o local também era a residência do casal. No entanto, nomes como Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Nara Leão, Alcione, Beth Carvalho, Ismael Silva, Zé Kéti, Clementina de Jesus, entre muitos outros, praticamente moravam no sobrado. O samba, que já era visto com preconceito por ter vindo da periferia negra do Rio, foi ainda mais reprimido no período dos milicos, tornando o Zicartola um ponto de resistência política – lá, foram plantadas as sementes do show Opinião e do espetáculo Rosa de Ouro. Infelizmente, problemas com a administração da casa a fecharam rapidamente.
Apenas em 1974, com 65 anos, Cartola lançou seu primeiro disco-solo. Cartola, como foi batizado, rapidamente se tornou um clássico da música brasileira. É indiscutível a sensibilidade do poeta em seu primeiro trabalho, que emplacou canções como Alvorada, Disfarça e Chora e Acontece – esta última sendo a escolhida pelo cantor como a que queria ser lembrado na posteridade. Produzido pelo famoso Pelão, o disco foi elogiadíssimo pela crítica, elevando, merecidamente, ainda mais o status do compositor. O Sol Nascerá, sexta faixa do álbum, foi composta em parceria com o amigo Elton Medeiros de forma improvisada e, até hoje, é entoada sagradamente em rodas de samba pelo país.
Dois anos depois, veio mais um sucesso: Cartola, novamente, mas com 1976 ao lado. O segundo disco conseguiu um feito ainda mais impressionante – superar o primeiro. Facilmente uma das melhores obras da música brasileira, Cartola (1976) já fisga o ouvinte logo na abertura. O Mundo é Um Moinho é sufocante tamanha a qualidade da composição do mangueirense. Na letra, cavamos abismos com nossos pés enquanto Cartola suplica por atenção. Quatro faixas depois, somos arrebatados de novo. Dessa vez, a responsável é Preciso Me Encontrar, composição do sambista Candeia, ícone da Portela. Na voz de Cartola, impossível não associar seus acordes com a cena da morte de Cabeleira, em Cidade de Deus, filme de 2002 dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund. Se alguém, por mim, perguntar, diga que eu só vou voltar depois que me encontrar.
Outra canção gigante do trabalho é, sem dúvidas, As Rosas Não Falam. A mais conhecida faixa do álbum foi venerada por ser Cartola em seu estado puro de melancolia e sabedoria. Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti, ele poetiza. Além das faixas, a capa do disco também se tornou um clássico. Dona Zica e Cartola na janela de sua casa, construída depois que o Estado os cedeu um terreno na Mangueira. A rua Visconde de Niterói, número 896, se tornou o endereço mais movimentado da capital carioca.
Seus dois últimos LPs foram produzidos por seu amigo e jornalista Sérgio Cabral e editados pela gravadora RCA-Victor. Para Cabral, Cartola “é o Beethoven do samba”, revolucionário e único. Em 1977, foi a vez de Verde Que Te Quero Rosa, com a tão reproduzida imagem do cantor com seus óculos escuros segurando uma xícara verde e um pires rosa, ainda com um cigarro na mão. O álbum é uma ode à Mangueira e seus primeiros campeões, mas também contém uma linda homenagem a sua parceira – Nós Dois, escrita antes do casamento com Zica, em 64.
O casal deixou o morro em 1978, pois precisavam de um pouco mais de paz e tranquilidade para compor, e se mudaram para Jacarepaguá. Cartola 70 anos veio no ano seguinte, com um tom de despedida, já que o artista estava bem fragilizado em decorrência do câncer na tireóide. O LP foi lançado em comemoração aos 70 anos do poeta e, em entrevista ao Canal Brasil, Sérgio Cabral afirma que “ele sabia que era o último”. De forma mais dramática, Cartola chegou a gravar nove músicas em uma noite, batalhando pelo seu trabalho final. O Inverno Do Meu Tempo e A Cor da Esperança foram compostas ao lado de Roberto Nascimento, e Ciência e Arte, junto de Carlos Cachaça. Tu és meu Brasil em toda parte, quer na ciência ou na arte, portentoso e altaneiro.
O fatídico dia veio, e Cartola partiu em um domingo, 30 de novembro. Nelson Cavaquinho já cantava que em Mangueira, quando morre um poeta, todos choram. E o morro chorou, com Cartola tranquilo. Sei que alguém há de chorar quando eu morrer. O sambista foi velado na quadra da Estação Primeira de Mangueira, ao som de uma multidão ressoando As Rosas Não Falam. Em 2020, 40 anos depois, as rosas seguem caladas. Apenas exalando a arte de Angenor.
Três dias depois de sua partida, em 2 de dezembro, é comemorado o dia nacional do samba, gênero musical que Cartola ajudou a moldar e transformar em poesia, como ele, e só ele, soube fazer. Seguimos disfarçando e chorando sem sua presença, mas já é praxe dizer que grandes nomes nunca morrem. Quando se trata de Angenor de Oliveira, negro, sambista, poeta, boêmio, compositor, dono de um grande coração e um nariz marcado, a certeza é uma: sem ele, o mundo continua sendo um grande (e mais vazio) moinho.