Jamily Rigonatto
Caju, um alimento popular da cultura brasileira que se desmancha em possibilidades: pode ser suco, pode ter a castanha extraída, pode ser polpa, só não pode ser por inteiro fruto, apesar de se parecer com um. É o tal pseudofruto, em parte fruta, em parte pedúnculo floral. Na miscelânea de ser e não ser, Liniker escolhe sentir o gosto do indefinido e tirar a pele de Caju, álbum lançado em Agosto de 2024.
Do romance completo ao quebranto no peito após os fins, a cantora viaja nos múltiplos de amar para criar um dos discos mais originais dos últimos tempos. Com 14 faixas tão ligadas quanto independentes, somos tomados por melodiosos tons que provam: se apaixonar e doer são sentimentos que jamais foram tão bem descritos. Por isso, definir a produção de forma simplista se conceberia como um equívoco monumental.
Que Liniker é uma potência vocal e lírica inigualável todos já sabiam, mas que essa persona poderia se amplificar na concepção de algo como Caju, era impossível prever com assertividade. O herdeiro do legado do vencedor do Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Afro-Portuguesa-Brasileira, Índigo Borboleta Anil, carregava a imensa expectativa de um público que esperava o profundo das canções da artista e não só supriu estas, como entregou um mergulho na zona abissal.
A força poética do disco se mistura à escolha ousada dos ritmos que compõem a produção. Assim, as linhas suaves da MPB ganham nuances diversas ao se juntarem com o pop, R&B, soul e pagode. Essa direção bem medida causa dois efeitos: faixas únicas e, em contraponto, uma sequência bem conectada de singles. Caju é conjunto e unidade ao mesmo tempo, sem perder o impacto em nenhuma das formas.
Nas letras românticas, sensuais ou até declaratórias, Liniker, que assina a composição de todas as faixas, se propõe a ser um raio de sol e, de fato, assume tal personalidade. As cores vibrantes da identidade das peças gráficas e visualizers do disco acompanham ritmos igualmente bem humorados e calorosos, transformando a experiência do ouvinte em um completo afago.
Ainda assim, a produção fica longe de ser a famosa água com açúcar. Mesmo tratando do tema mais comum do mundo artístico – o amor –, é válido lembrar que é também o mais inesgotável em possibilidades e a cantora agarra isso com unhas e dentes. Sem citar o fato, mas existindo como uma mulher trans negra, seu eu-lírico grita não só grandes paixões, brada também o medo de viver sem ter alguém do lado para compartilhar conquistas e futuro. “Quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida, quem vai me chamar de amor, de gostosa, de querida?”, ressoa na faixa homônima ao disco.
Outras concepções sobre Liniker enquanto artista e as mulheres que a inspiram e se inspiram nela podem ser extraídas das canções. O desejo de ter uma parceria que se torne parte do rotineiro aparece em Ao Teu Lado com o duo AnaVitória. Assim como a áurea corajosa e determinada reconhecível em Negona dos olhos terríveis, um dos poucos singles interpretados de forma solo e provavelmente um dos mais subjetivos.
Apesar dos esforços, Caju não conseguiu entrar para nenhuma nomeação nas categorias do Grammy 2025. O conjunto foi submetido por Liniker como Melhor Álbum de Música Global e Melhor Álbum de Engenharia Não Clássico. Alguns singles também tentaram a vez como Veludo Marrom em Melhor Performance Musical Global e So Special em Melhor Gravação Dance Pop. Infelizmente, o lançamento não foi concebido a tempo de garantir a vaga na maior premiação musical do mundo.
Por outro lado, o disco reinou no Prêmio Multishow, realizado em Dezembro de 2024 no Rio de Janeiro. A artista foi reconhecida em quatro categorias: Artista do Ano, Álbum do Ano, Capa do Ano e MPB do Ano. A coletânea de músicas conquistou todos os prêmios aos quais foi indicada, exceto Hit do Ano, que ficou com Lauana Prado pela releitura de Escrito nas Estrelas.
Aos 29 anos, Liniker revela uma maturidade vocal e poética tão avançada que soa surpreendente. Com uma trajetória de acertos, desde a participação como vocalista de Liniker e os Caramelows até a realização de Índigo Borboleta Anil, o caminho que a revela em Caju é um misto: sabíamos que algo grande estava por vir, mas a preciosidade do trabalho é mais extensa que o previsto e, sinceramente, que presente.
Sem ressalvas ou poréns, a certeza é de que o voo da cantora com o disco foi o maior de sua vida. Não é como se ela não pudesse se superar em novos lançamentos, no entanto, a força da ruptura de Caju na Música Popular Brasileira é única, singular e irrevogável. Talvez, gostemos ainda mais de ti quando se coloca em tamanha vulnerabilidade, cor e incontavelmente cheia de amor, Liniker.