![Capa do álbum Caju. Na imagem, Liniker aparece dentro de um carro antigo, vermelho com a estampa alaranjada de uma flor de cajueiro desenhada na porta. A cantora negra com cabelo raspado tem feição séria. O destaque da foto fica para sua mão, que coleciona diversos anéis e longas unhas amendoadas na cor roxa. Ela segura o ferro que sustenta a janela do carro com suavidade. Ao fundo, é possível ver o céu azul de uma paisagem aberta de dia.](http://personaunesp.com.br/wp-content/uploads/2024/12/unnamed-4-800x800.jpg)
Jamily Rigonatto
Caju, um alimento popular da cultura brasileira que se desmancha em possibilidades: pode ser suco, pode ter a castanha extraída, pode ser polpa, só não pode ser por inteiro fruto, apesar de se parecer com um. É o tal pseudofruto, em parte fruta, em parte pedúnculo floral. Na miscelânea de ser e não ser, Liniker escolhe sentir o gosto do indefinido e tirar a pele de Caju, álbum lançado em Agosto de 2024.
Do romance completo ao quebranto no peito após os fins, a cantora viaja nos múltiplos de amar para criar um dos discos mais originais dos últimos tempos. Com 14 faixas tão ligadas quanto independentes, somos tomados por melodiosos tons que provam: se apaixonar e doer são sentimentos que jamais foram tão bem descritos. Por isso, definir a produção de forma simplista se conceberia como um equívoco monumental.
Que Liniker é uma potência vocal e lírica inigualável todos já sabiam, mas que essa persona poderia se amplificar na concepção de algo como Caju, era impossível prever com assertividade. O herdeiro do legado do vencedor do Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Afro-Portuguesa-Brasileira, Índigo Borboleta Anil, carregava a imensa expectativa de um público que esperava o profundo das canções da artista e não só supriu estas, como entregou um mergulho na zona abissal.
A força poética do disco se mistura à escolha ousada dos ritmos que compõem a produção. Assim, as linhas suaves da MPB ganham nuances diversas ao se juntarem com o pop, R&B, soul e pagode. Essa direção bem medida causa dois efeitos: faixas únicas e, em contraponto, uma sequência bem conectada de singles. Caju é conjunto e unidade ao mesmo tempo, sem perder o impacto em nenhuma das formas.
![Foto da cantora Liniker. Na imagem, Liniker aparece com uma feição séria, cabelos black power longos e loiros e sobrancelha louro escura. Ela é uma mulher negra retinta e veste um top de miçangas coloridas e um colar com pingente de chave. Abaixo do top, podemos ver uma faixa branca com o logo da Calvin Klein. Ao fundo da foto, um espaço natural com mato e alguns frutos de cajueiro são visíveis.](http://personaunesp.com.br/wp-content/uploads/2024/12/unnamed-5.jpg)
Nas letras românticas, sensuais ou até declaratórias, Liniker, que assina a composição de todas as faixas, se propõe a ser um raio de sol e, de fato, assume tal personalidade. As cores vibrantes da identidade das peças gráficas e visualizers do disco acompanham ritmos igualmente bem humorados e calorosos, transformando a experiência do ouvinte em um completo afago.
Ainda assim, a produção fica longe de ser a famosa água com açúcar. Mesmo tratando do tema mais comum do mundo artístico – o amor –, é válido lembrar que é também o mais inesgotável em possibilidades e a cantora agarra isso com unhas e dentes. Sem citar o fato, mas existindo como uma mulher trans negra, seu eu-lírico grita não só grandes paixões, brada também o medo de viver sem ter alguém do lado para compartilhar conquistas e futuro. “Quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida, quem vai me chamar de amor, de gostosa, de querida?”, ressoa na faixa homônima ao disco.
Outras concepções sobre Liniker enquanto artista e as mulheres que a inspiram e se inspiram nela podem ser extraídas das canções. O desejo de ter uma parceria que se torne parte do rotineiro aparece em Ao Teu Lado com o duo AnaVitória. Assim como a áurea corajosa e determinada reconhecível em Negona dos olhos terríveis, um dos poucos singles interpretados de forma solo e provavelmente um dos mais subjetivos.
Apesar dos esforços, Caju não conseguiu entrar para nenhuma nomeação nas categorias do Grammy 2025. O conjunto foi submetido por Liniker como Melhor Álbum de Música Global e Melhor Álbum de Engenharia Não Clássico. Alguns singles também tentaram a vez como Veludo Marrom em Melhor Performance Musical Global e So Special em Melhor Gravação Dance Pop. Infelizmente, o lançamento não foi concebido a tempo de garantir a vaga na maior premiação musical do mundo.
Por outro lado, o disco reinou no Prêmio Multishow, realizado em Dezembro de 2024 no Rio de Janeiro. A artista foi reconhecida em quatro categorias: Artista do Ano, Álbum do Ano, Capa do Ano e MPB do Ano. A coletânea de músicas conquistou todos os prêmios aos quais foi indicada, exceto Hit do Ano, que ficou com Lauana Prado pela releitura de Escrito nas Estrelas.
![Foto da cantora Liniker. Na imagem, Liniker aparece com uma feição séria, cabelos curtos loiros quase raspados e sobrancelha louro escura. Ela é uma mulher negra retinta e veste um top de miçangas coloridas e um colar com pingente de chave. Ao fundo da foto, um espaço natural com uma árvore de baixa folhagem aparece.](http://personaunesp.com.br/wp-content/uploads/2024/12/unnamed-6.jpg)
Aos 29 anos, Liniker revela uma maturidade vocal e poética tão avançada que soa surpreendente. Com uma trajetória de acertos, desde a participação como vocalista de Liniker e os Caramelows até a realização de Índigo Borboleta Anil, o caminho que a revela em Caju é um misto: sabíamos que algo grande estava por vir, mas a preciosidade do trabalho é mais extensa que o previsto e, sinceramente, que presente.
Sem ressalvas ou poréns, a certeza é de que o voo da cantora com o disco foi o maior de sua vida. Não é como se ela não pudesse se superar em novos lançamentos, no entanto, a força da ruptura de Caju na Música Popular Brasileira é única, singular e irrevogável. Talvez, gostemos ainda mais de ti quando se coloca em tamanha vulnerabilidade, cor e incontavelmente cheia de amor, Liniker.