Flora Vieira da Silva Amorim
Brenda Lee e o Palácio das Princesas, musical teatral escrito e produzido pela companhia Núcleo Experimental, conta a história de Brenda Lee (Verónica Valenttino), travesti que criou, na São Paulo da década de 1980, a primeira casa de apoio para pessoas trans e travestis portadoras do vírus HIV. Misturando a história real de Lee com cinco outras travestis inspiradas nas clássicas princesas da Disney, a peça de teatro vencedora dos prêmios Bibi Ferreira (Atriz Revelação em Musicais e Melhor Roteiro), APCA (Melhor Espetáculo do Ano) e Shell (Melhor Atriz) explora, de forma sensível e impactante, a realidade dessas mulheres no Brasil, que, desde aquele tempo, pouco mudou.
A história começa com Cínthia Minelli (Olivia Lopes), a narradora-personagem, apresentando as protagonistas Blanche de Niège (Leona Jhovs), Ariela Del Mare (Tyller Antunes), Raíssa (Andrea Rosa Sá) e Isabelle Labette (Elix). Abandonadas, expulsas ou desprezadas pela família, todas elas foram obrigadas a recorrer à prostituição – e, em algum momento da vida, encontraram Brenda Lee, que as acolheu, oferecendo casa, comida e, principalmente, amor. Minelli, a mais diferente das cinco, nasceu rica, mas também foi abandonada pelos pais e procurou Lee já infectada pelo HIV, arrependida de uma briga que ambas tiveram no passado.
Acompanhando o dia-a-dia dessas meninas, a história primeiro explora a realidade das ruas, principalmente por meio das músicas A Rua é Mundo Cão e A Rua é Cruel, é Sina. Enquanto a primeira, cantada por Brenda Lee, explicita a corda bamba em que as personagens se encontram – entre a violência policial, dos clientes e do tráfico – a segunda acontece entre dois momentos cruciais: a demissão de Raíssa, que se vê nesse momento obrigada a trabalhar nas ruas, e uma ‘operação policial’ (claramente uma operação de extermínio), que mata uma travesti e fere outras onze, incluindo algumas das personagens.
Um tema recorrente durante as duas horas e quarenta de duração é a convivência com o HIV, vírus causador da AIDS. Nos anos 1980, quando o tratamento para a doença era inexistente ou ainda muito tímido, ser soropositivo era quase uma sentença de morte, e não era diferente na São Paulo daquela década. A peça trabalha o tema com ternura, mas com a seriedade necessária, principalmente na figura de Cínthia Minelli que, ao longo da história, vai ficando cada vez mais fraca e pálida, condição que transparece durante as narrações que faz ao longo da apresentação. A música Somos só o Medo e Eu também trata da angústia que é receber o diagnóstico e de como, em uma rotina de trabalho degradante, a exposição à doença é quase inevitável.
A trajetória de Brenda Lee e sua relação com o palácio das princesas percorre toda a história. A peça nos apresenta uma mulher forte e esperançosa, que vivia com a casa em reforma e que sonhava em transformá-la num porto seguro às mulheres trans e travestis que iam até ela à procura de abrigo, mas que, diante das circunstâncias, teve que se adaptar e transformar o sonhado palácio numa casa de apoio. A música Palácio das Princesas, cantada por ela no começo da narrativa, explicita bem esse sonho. Outra versão da canção também aparece do meio para o final do espetáculo, mais melancólica que a primeira, marcando a transformação daquele espaço, após o acordo com a figura do Médico (Fábio Redkowicz).
Cada uma das outras personagens também tem uma trajetória impactante à sua maneira; Blanche de Niège luta contra o vício em cocaína, Ariela Del Mare faz planos para realizar uma cirurgia de redesignação sexual, Raíssa sonha em se tornar cabeleireira e Isabelle Labette em estudar numa faculdade. Essas realidades são apresentadas também em músicas cantadas individualmente pelas personagens, explorando seus conflitos familiares, ambições e, principalmente, a solidão para qual são empurradas graças ao preconceito muitas vezes explícito de uma sociedade doente e ignorante. O que todas as histórias têm em comum é que Lee está presente em cada uma delas, sacrificando-se para que todas consigam realizar seus sonhos.
É impossível expressar em palavras a potência das canções e da dramaturgia da peça, montada por Fernanda Maia. É também impressionante como ela consegue tratar de temas tão pesados e intensos de forma sensível, capaz de fazer chorar qualquer pessoa que tenha vivenciado, mesmo que só um pouco, do que cada uma daquelas personagens viveu. Os números musicais são extremamente criativos e bem distribuídos, as atrizes, todas travestis, são extremamente talentosas, e a história é forte e, por mais difícil que para alguns seja admitir, muito atual. A única crítica se direciona à estrutura de som do teatro Paulo Moura, que muitas vezes dificulta o entendimento de diálogos tão bem escritos e canções tão bem produzidas, o que é uma pena.
Brenda Lee foi assassinada por um ex-companheiro em 1996, e, no fim, nem direito a ser tratada no feminino teve pela imprensa, que insistia, junto da polícia, em enxergar a transgeneridade como um monstro, uma doença, uma anormalidade que merecesse combate. Uma vida que existiu para ajudar os outros, para dar uma família àquelas que foram abandonadas, que cuidou de quem pôde até o fim, merecia muito mais. A missão que o Núcleo Experimental assumiu para si respeita e engrandece sua memória, com muito brilho, diversão e, no fim, muitas lágrimas também. Brenda Lee e o Palácio das Princesas é, facilmente, uma das representações mais fiéis da realidade, dentro dos limites de uma peça teatral, do íntimo do que significa ser travesti no Brasil.