Henrique Marinhos
Provando por ‘A+B’ que opera nas margens do mainstream, não por falta de talento ou oportunidade, mas porque simplesmente quis assim, Charli XCX tornou-se uma força motriz na Arte contemporânea. Um álbum. Um movimento. Um estilo de vida. BRAT é quase inadjetivável e não tem espaço para introspecções ou profundidades poéticas excessivas. É o agora.
Das noites de Londres para o mundo, o álbum não se limita aos clubes e raves ilegais em que se inspira. É uma injeção de ânimo ao acordar, um saudosismo em relação a década de 2000, um manifesto do próprio Id – conceito freudiano da natureza humana – e sua primitividade. A internet o abraçou com todo coração, tanto em seus momentos mais agressivos quanto vulneráveis, afinal, até cortar a ‘brisa’ encaixa no conceito.
O termo que costumava descrever uma pessoa teimosa ou malcriada, que não segue regras e trilha seu próprio caminho, consagrou-se como algo muito maior do que qualquer um esperava. Ele é representado por uma capa verde neon com fonte preta pixelada e transcende seu sentido. É, inegavelmente, a obra mais memorável de 2024, tendo como produtores principais A. G. Cook e EASYFUN, parceiros de longa data de XCX no PC Music.
Em uma entrevista à Vogue Singapura, Charli XCX conta que queria algo ofensivo, um tom de verde fora de moda para despertar a ideia de que algo estava errado. Ela queria provocar as pessoas e conseguiu. BRAT passa longe de ser só uma audição passiva. É um convite – ou melhor, um desafio – a participar de uma narrativa transmídia, conectando diferentes plataformas e públicos, cruzando estéticas visuais, sonoras e comportamentais para criar algo maior do que a soma de suas partes, como bem dizia Henry Jenkins.
Essa estética tão fora de moda acabou sendo o lançamento mais moderno de 2024, virou meme, trend, se tornou viral no TikTok e no X (antigo Twitter), e tudo isso não foi à toa. Orquestrar esses efeitos de sentido, criando uma rede colaborativa entre ela e seus fãs é uma jogada precisa, pensada, que vai muito além de soltar uma música e esperar que aconteça algo.
Depois disso, ela nunca mais poderia andar de metrô com seus fãs em SP, mas os palcos da ZIG estão reservados para quando quiser voltar. Seu alterego Partygirl veio ao Brasil e evocou a pirralha – tradução literal de brat – de 15 anos que conheceu um cara no MySpace e a chamou para tocar em suas raves ilegais em Londres, marcando o início de sua carreira.
Apesar de tudo que a mídia a faz sentir, em Von dutch, produzido por EASYFUN, Charli XCX sabe seu valor. O batidão do primeiro single dita o tom sonoro e visual do álbum, a artista – com ‘A’ maiúsculo – repetidamente agride câmeras no clipe, as joga de escadas, sobe em asas de aviões, se lança em carrinhos de mala e ‘dá closes’. Longe de qualquer prepotência, ela sabe que pode fazer tudo isso porque “É óbvio, sou sua número um”.
Creditada como compositora de todas as faixas, Charlotte Aitchison traz pensamentos rápidos, ‘bobeiras’ que falamos bêbados e exageros deliciosos que nos fazem rir. BRAT não é o lugar de procurar qualquer comparação com Clarice Lispector. Mas nem por isso deixa de ser extremamente inteligente. Não é surpresa alguma que provocar efeitos de sentido intencionais e usar a convergência midiática com tamanha maestria exige um trabalho extremamente minucioso, e traz resultados mais eficazes que lançar vários trabalhos em curtos espaços de tempo; cof, cof, Taylor Swift, Ariana Grande…
Tudo aqui é uma narrativa interligada, mesmo que introspecção e críticas não sejam o foco, podemos discorrer sobre elas por um período de tempo. Em suma, essa nova era explora as pressões da vida moderna, especialmente para mulheres que estão na casa dos 30. Temas como maternidade, amizade, fama e a constante busca por autenticidade são costurados ao longo das faixas e nos clipes, às vezes, com remendos, porém se propondo a quebrar os moldes da identidade feminina criados pelas expectativas sociais. No clipe de 360, dirigido por Aidan Zamiri, XCX chama todas as It Girls para provar seu ponto: Rachel Sennott, Julia Fox (mencionada em versos), Chloe Cherry, Gabriette (do Nasty Cherry) e Richie Shazam, ainda com a participação de A.G. Cook, produtor e precursor do PC Music.
A maternidade, por exemplo, surge de forma sensível em I Think About It All the Time, onde a cantora reflete sobre o desejo de ser mãe. “Mas finalmente conheci meu amor/E um bebê pode ser meu […] Se eu não ficar sem tempo/Isso daria um novo propósito à minha vida?”. Pensando sempre em sua carreira e conquistas pessoais frente às expectativas de terceiros, é uma das faixas que, sonoramente, mais destoam do tom de rave e hyperpop.
Paralelamente, existe So I, faixa feita em luto. “Sempre na minha mente/Todo dia, toda noite/Sua estrela é a mais brilhante de todas”. Nessa música, Charli se permite chorar e sentir tudo o que tem para sentir. É uma faixa menos acelerada e muito mais pessoal. É como se abrissem seu diário, citando seus momentos no palco e os pensamentos que a levam a fazer homenagem à Sophie, assim como Crash, dedicado à ela em 2021.
As nuances entre admiração e competição também são muito bem exploradas em Girl, So Confusing: “As vezes penso que você me odeia/Às vezes penso que te odeio”. Indireta ou não, associaram à Lorde. Seja pela tensão entre ser comparada constantemente ou pelo desafio de preservar a autenticidade no meio. Em mais uma polêmica, todo conflito se dissolveu nos versos do feat sugerido pela estrela de Melodrama. “Você me contou como estava se sentindo/Vamos resolver isso no remix”; a troca de indiretas em stories teve uma interpretação dúbia.
O mesmo aconteceu com Sympathy is a knife, outra situação em que seus fãs foram na contramão à mensagem que XCX quis passar, tecendo uma crítica à polidez forçada e às rivalidades escondidas. Isso foi o suficiente para a fanbase, que mordeu a isca. O alvo da vez? a ‘loirinha’ mais polida do pop, Taylor Swift. A suposta dona de uma simpatia que parece amigável, carregada de intenções negativas junto a julgamentos ocultos disfarçados de elogios, reforçando o tema de vulnerabilidade em meio à fama. Mas logo os fãs se calaram (online e presencialmente). Em pronunciamento, Charli XCX afirmou ser contra manifestos que ‘enterravam’ sua possível rival, “A Taylor morreu”.
Cultivando profundo senso de nostalgia pela década de 2000, as referências à estética e cultura Y2K permeiam todo o álbum, se concentrando em faixas como Club Classics, literal e intencionalmente intitulada. A faixa evoca tanto o espírito despreocupado quanto a rebeldia e estética do período, sem celulares, só com a noite para viver. No entanto, como sempre, misturando-os com sons eletrônicos modernos desde o lançamento de 1999 feat. Troye Sivan.
O cantor australiano praticamente se manifesta como o público alvo principal de BRAT. De propósito ou não, a comunidade LGBTQIAP+ foi a que mais engajou, divulgou e sentiu todo processo cultural do álbum. Desde conceitos como adolescência tardia, liberdade para sermos quem somos, ou quaisquer outros espaços de libertação – que envolvam ou não aditivos a lá 365 –, o Id é, provavelmente, o conceito em que mais podemos associá-lo, por mais técnico e academicista que possa parecer.
Em termos freudianos, diferente do ego e superego, o Id representa nossos impulsos e desejos básicos, frequentemente em conflito com as expectativas sociais. Agressiva e conflitante, ela explora temas de desejo, quebra de limites, fala o que vem à mente, mesmo que acabe pesando o clima e ‘cortando a brisa’ ao perguntar o motivo de – com liberdade poética – querer comprar uma arma e atirar em si mesma de tanta vergonha.
No fim, BRAT é sobre si mesmo. Quando todos estão malucos em uma festa, ninguém se importa com quem você é, quais roupas está vestindo, como você dança, se está feliz, na sua própria bad trip ou preocupado com seu ex no telefone. Ninguém está ligando e você também não deveria, porque essa noite vai acabar. E quando essa euforia se dissipar durante o dia, tudo que você vai querer é que a noite chegue novamente.
BRAT não é um álbum perfeito e nem se propõe a isso. É um disco intencional e minucioso. Charli XCX merece tudo que tem conquistado e o que ainda está por vir. Ao escutarmos, pulamos algumas faixas, deixamos outras no repeat e isso varia para cada pessoa. Com o projeto, estamos de volta aos primeiros anos da década de 2000, lembrando do valor de estar presente e de viver cada instante plenamente.