Eli Vagner F. Rodrigues
Quando Charlie Parker morreu, em 12 de março de 1955, aos 34 anos, o médico legista testemunhou que seu corpo parecia o de um homem de 65, resultado de sua adição em heroína. Quando Chet Baker caiu da janela de um hotel em Amsterdam em 13 de maio de 1988, aos 58 anos, seu corpo aparentava ser de um homem de 80 anos, efeito da mesma devastação provocada por essa que foi a droga mais associada à história do jazz.
Um capítulo significativo dessa história é contada pelo filme Born To be Blue (EUA , 2016) de Robert Budreau. O longa metragem retrata o esforço de Chet Baker nas diversas tentativas de recuperar o que a heroína foi lhe tirando ao longo dos anos. A lógica desse processo de decadência física e produtiva é conhecida e incluem aspectos que vão desde o processo natural de degeneração às feridas causadas pelo convívio no submundo do crime. O caso de Baker tem marcas que se tornaram famosas na crônica musical do jazz. Um desses momentos de degradação é retratado na primeira metade do filme, e trata da tentativa do artista em recuperar a “embocadura” (técnica fundamental para a prática do trompete que consiste em posicionar com pressão e posição específica e soprar corretamente o instrumento que requer, obviamente, o apoio dos dentes frontais), depois de ter perdido um dos dentes (incisivo central) ao ser surrado por um traficante.
Tocar trompete sem os dentes frontais é praticamente impossível, a solução foi um dente postiço, uma prótese, que na época não tinha a mesma fixação proporcionada pelas técnicas de implante de hoje. As sequências dessa readaptação são o retrato acabado da decadência. Chet Baker, bem interpretado por Ethan Hawke, passa todo o filme tentando zerar o saldo de danos causados pela droga. Nessa tentativa, procura recuperar uma relação afetiva baseada na confiança e não em altos e baixos de comportamento, emergências médicas e golpes baixos de submundo, um contrato com uma gravadora que pudesse lhe dar alguma estabilidade financeira e, talvez o que ele mais buscava, o reconhecimento de artistas importantes do mundo do Jazz em relação à sua música.
Chet Baker não foi um músico dotado de uma veia criativa comparável a nomes como Miles Davis, Charlie Parker, Louis Armstrong, seus ídolos. Tampouco era um virtuoso como Dizzie Guliespie ou Wynton Marsallis, para ficarmos no ambiente do trompete – seu nome não figura como peça fundamental de nenhum movimento na história do jazz. O ambiente artístico de Chet era baseado muito mais na aposta em uma postura interpretativa, na opção por baladas, certa indolência na voz fraca e, sobretudo, na própria ousadia de cantar alguns standards. O resultado dessa combinação, no entanto, foi reconhecidamente marcante. Suas interpretações deixavam uma aura de melancolia e desprendimento que forjaram o que genericamente se caracteriza como cool jazz, designação, talvez, mais de uma postura em relação à interpretação e ao próprio estilo de vida do que, propriamente, de uma vertente específica do gênero.
Budreau consegue extrair, das inúmeras tentativas de Baker de sair dos ciclos do vício, o elemento necessário para que o público acompanhe sua história com interesse e empatia. A fragilidade do artista frente aos desafios quase intransponíveis de um dependente em heroína se sobrepõem à imagem do artista como uma estrela da música: o diretor encontrou o nexo entre a natureza trágica de sua vida e sua perspectiva musical. A melancolia que o jazzista expressa em suas interpretações não poderia ser mais autêntica. O lamento de canções como “Autum Leaves”, “My Funny Valentine”, giram em torno de objetivos não alcançados no amor, na vida, na carreira. Obviamente estes temas são universais, no entanto, se acentuam em naturezas trágicas e em personalidades limítrofes como a de Chet Baker.
A influência da heroína no Jazz não é ocasional. O efeito da droga sobre o ambiente cultural do jazz no pós-guerra foi tão grande que um artista como Artie Shaw, que também teve seus problemas com a substância chegou a declarar que “o jazz nasceu dentro de um barril de whisky, cresceu com a maconha e está na iminência de morrer com a heroína”. Além do supracitado Charlie Parker, também foram vítimas da epidemia: Stan Levey, Gerry Mulligan, Art Barkley, John Coltrane, Dexter Gordon, Stan Getz, Miles Davis e Bill Evans, para ficar entre os mais famosos.
Os “historiadores do jazz”, entre eles Eric Hobsbawn, Collier, James L e Andre Francis, apontam para uma tendência relevante sobre o tema. Durante o florescimento do gênero em centros como Nova York havia uma espécie de ritual de iniciação ao mundo do jazz que passava pelo consumo de drogas e pela inserção no submundo de bares, tráfico e criminalidade. Vários artistas declararam que sua iniciação teria passado um tipo de “praxe” nos círculos musicais ligado ao consumo de substâncias proibidas. Billie Holliday, Miles Davis, até mesmo a brasileira Flora Purim, que chegou a gravar com a geração “Return to Forever” testemunham a relação. O mundo do rock, que nos anos 60 criou um verdadeiro culto pop a comportamentos transgressores, não foi o precursor dessa relação, nem sempre produtiva, entre a música e as substâncias tóxicas. Quando os Rolling Stones gravam “Brown Sugar” em 1971, uma daquelas apologias veladas ao paraíso perigoso dos estados alterados de consciência, a heroína já havia feito várias vítimas no mundo do jazz.
Sobre esse tema, a BBC publicou recentemente os resultados do estudo do psicólogo Geoffrey Wills, de Stockport, no norte da Inglaterra. Wills pesquisou a vida de 40 grandes mestres do jazz para analisar a relação entre a droga e a música.
O pesquisador concluiu que a propensão para os distúrbios de comportamento entre eles era quatro vezes maior que a média da sociedade, e a dependência de drogas era oito vezes superior à média. O uso intenso de drogas era outra característica comum, e mais da metade dos 40 músicos foi viciada em heroína em algum momento da vida. Milles Davis, Art Pepper e Bill Evans eram grandes usuários de cocaína, de acordo com Wills. O pesquisador nota que a heroína utilizada pelos músicos era normalmente encontrada nos bairros pobres, em geral habitados por negros, nas grandes cidades. “O jazz moderno era uma música revolucionária e rejeitada pelo grande público, e a heroína, como a música, era um modo de desafiar a sociedade”, diz o psicólogo. Wills conclui: “Não quero dizer que todos os músicos de jazz são loucos, mas quero destacar uma tendência em relação à saúde mental que pode ser também percebida em pessoas em outras atividades criativas” (na literatura, há um estudo semelhante envolvendo poetisas, chamado por alguns psicólogos de “efeito Sylvia Plath“).
Born to be Blue proporciona uma ótima introdução ao universo sonoro de Chet Baker, sobretudo porque Robert Budreau soube escolher muito bem o repertório melancólico do filme e não poupou o artista do aspecto decadente sem o qual não se poderia retratar sua história. Uma piada de mau gosto do mundo do jazz não faz jus ao talento de Chet Baker, mas representa bem os efeitos da heroína sobre a face do artista: no início da carreira Chet Baker, era chamado de James Dean do jazz; quando morreu, parecia Jack Palance.
Interessantíssimo. Como músico iniciante e aficionado pela história da música, achei a leitura do texto muito agradável e informativa. Verei “Born to be blue”, com certeza. Muito obrigado.