Jho Brunhara
Over The Rainbow, I Will Survive, I’m Coming Out, True Colors, Express Yourself, Beautiful, Firework. Ao longo da história, a comunidade LGBTQIA+ encontrou nas músicas de grandes cantoras o conforto proporcionado por letras sobre esperança, libertação e expressão. Algumas dessas, com uma mensagem quase explícita sobre aceitação direcionada ao público queer, confirmada pelos clipes, onde tinham maior liberdade do que nas letras (que poderiam ser boicotadas pelas rádios). Quando Lady Gaga lançou a faixa Born This Way e colocou a canção para tocar no mundo todo, ela também estava transmitindo o trecho “Não importa se você é gay, hétero ou bi/Lésbica ou transgênero/Eu estou no caminho certo, baby/Eu nasci para sobreviver”.
Dez anos atrás, o mundo já estava avançando em algumas pautas relacionadas à comunidade LGBTQIA+, mas 2011 ainda era 2011. Para uma artista do calibre de Gaga, que estava no auge da carreira como fenômeno pop instantâneo, divertir o mundo com suas investidas bizarras do The Fame Monster era completamente diferente de fazer uma afirmação política tão direta. Mas a intenção deu certo, e, apesar da rejeição por parte de seu público herdado do sucesso de Just Dance, Poker Face e Bad Romance, a artista conseguiu respaldo para seguir com seu projeto mais ambicioso até então.
O disco Born This Way, diferentemente da faixa homônima, abandona o electropop convencional que a cantora ajudou a popularizar nos anos anteriores e cria diversas camadas que difundem a mensagem do LP: encontrar força nas singularidades e estranhezas. Seja através da estética noturna metálica, punk e rebelde; da sonoridade electropop com influências diretas do rock, metal, synthpop, techno e, até mesmo, ópera; da mitologia alienígena análoga ao dualismo cristão; ou das letras sobre identidade, sexualidade, religião e liberdade. Ao longo das faixas, Gaga funde elementos de sua própria história com a narrativa que apresenta ao ouvinte, e, desde Marry The Night, com seus sinos de igreja, convida todos aqueles que precisarem para uma oração.
Naquele momento, suas palavras eram direcionadas aos seus fãs. Para aqueles jovens LGBTQIA+ que não sentiam apoio em casa e buscavam a aceitação, Gaga ergueu uma igreja e abriu as portas para os que procuravam refúgio. Se ofereceu como a figura materna que não encontravam em suas famílias de verdade, e tentou escrever, com base em suas próprias vivências, o que acreditava que aquelas pessoas precisavam ouvir, para se sentirem amadas e livres, para se expressarem do jeito que quisessem. A mesma megalomania que transformou Stefani Germanotta em Lady Gaga fez nascer o Born This Way, enterrando qualquer iconoclastia, consolidando a artista como Mother Monster, e oferecendo um lugar seguro para seus seguidores.
POR DEUS E PELOS GAYS
Muito antes de Born This Way, Gaga (que é bissexual) já declarava seu apoio à comunidade LGBTQIA+, e participou de diversas ações contra a homofobia nos EUA. Sempre trabalhando ao lado de pessoas queer, a cantora usava de sua Haus para dar vida às criações desses artistas. Até mesmo em premiações, foram muitos os discursos em que Gaga agradeceu a “Deus e aos gays”. Foi, inclusive, ao aceitar o prêmio de Vídeo do Ano por Bad Romance, no VMA de 2010, que ela anunciou o álbum Born This Way.
Utilizando o polêmico e controverso vestido de carne, Gaga usou do figurino para protestar contra o lema “Don’t ask, don’t tell”, revogado apenas em 2011. A política instaurada por Bill Clinton na década de 90 proibia que pessoas abertamente homossexuais ou bissexuais fizessem parte do exército estadunidense, e declarava um movimento de silenciamento com os que já eram militares, impedindo que os indivíduos “saíssem do armário”. Para a artista, que passou pelo tapete vermelho com dispensados do exército americano por sua sexualidade, a roupa feita de carne era um alerta para que as pessoas lutassem antes que tivessem “tantos direitos quanto carne em nossos ossos”.
O primeiro single da era, a faixa-título, saiu em meados de fevereiro de 2011. Com um clipe de mais de sete minutos, dava-se início a narrativa que acompanharia Born This Way até o fim dolorido e antecipado da turnê mundial. Dirigido pelo lendário Nick Knight, o vídeo introduziu a mitologia do álbum a partir do “Manifesto of Mother Monster”, um discurso sobre o nascimento de duas novas raças, uma representando o bem, sem qualquer preconceito, e uma representando o mal. Nesse novo mundo, chamado de G.O.A.T. (Government Owned Alien Territory, em tradução livre, Território Alienígena Comandado pelo Governo), Gaga imprimiu sua teatralidade genial de contar histórias.
A dicotomia do bem e do mal, por mais simples que seja, tinha exatamente a simplicidade como propósito de resgatar a dualidade cristã do céu e do inferno, dos puritanos e dos pecadores. Born This Way se apresenta como um distante apócrifo da Bíblia, com a figura da Mother Monster como uma líder religiosa futurista, e seus ensinamentos como uma tentativa de guiar uma geração que já enxergava em Lady Gaga a figura de um Messias (ou Anticristo) da revolução cultural.
Não à toa a nova-iorquina se estabeleceu como um camaleão na cultura pop e viciou o mundo em sua identidade visual bizarra. Aqui, seu comprometimento com sua estética atingiu o ápice: Gaga queria se portar como uma alienígena social, desde as jaquetas punk, até a maquiagem pesada preta, roupas de látex e as próteses faciais imitando chifres. Tudo dentro da proposta do Born This Way, encorajar e celebrar o esquisito e o único, através da expressão rebelde contra a norma convencional.
Um ano mais tarde, em 2012, Gaga abriu ainda mais as suas asas, disposta a estabelecer uma conexão direta com os seus fãs. Numa época em que as redes sociais ainda não eram centralizadas nas mãos de Mark Zuckerberg, o site Little Monsters funcionava como um Facebook para os little monsters, seguidores da cantora. Com um milhão de usuários registrados em 2013, a Mother Monster usava o canal para falar diretamente com seus monstrinhos, que utilizavam do espaço para compartilhar memes, artes e desabafar, muitas vezes, sobre homofobia, depressão, ansiedade e, até mesmo, publicar cartas de suicídio. Ativa na plataforma, a artista interagia com os posts e escrevia mensagens para os autores, na tentativa de ajudá-los com os problemas internos e externos, e promover um espaço de apoio, assim como o propósito da Born This Way Foundation, criada por Gaga e sua mãe.
ME ENCONTRE NA CAPELA ELÉTRICA
Com o lançamento do disco, em maio de 2011, não restaram dúvidas do que aquele universo queria ser: uma homenagem à noite e tudo que ela representa para as pessoas LGBTQIA+, que, historicamente, encontraram refúgio sob a luz da lua e na liberdade das boates. Combinar letras sobre sexualidade, identidade, feminismo, pecado, moda, esperança, medo e glória parece uma colcha de retalhos, mas Gaga costura com uma linha metálica e estampa sua jaqueta de couro personalizada com strass e spikes.
Assim como o caos da juventude, Born This Way é um caldeirão de sentimentos sobre quem ser e como se expressar. Como na faixa Hair, em que a artista conversa diretamente com sua adolescência e discursa a favor da singularidade de cada um, que, muitas vezes, encontra o escape através das roupas e do cabelo. “Eu só quero ser eu mesma e quero que vocês me amem por quem eu sou”, canta para seus pais.
A sonoridade dançante do álbum, já utilizada desde antes pela nova-iorquina, é alinhada com o que o gênero pop sempre representou para a comunidade queer, que utilizavam das boates como um espaço de expressão e libertação. “Reze por seus pecados embaixo do globo espelhado da discoteca”. Gaga canta em Electric Chapel, afirmando que o espaço seguro para a purificação dos medos e inseguranças é na pista de dança da Capela Elétrica, onde cada um pode ser quem quiser.
O profano, associado com a liberdade sexual, de gênero e da forma de se expressar, aqui, é subvertido como um ato glorioso, seja com Bloody Mary (uma de suas melhores letras), Heavy Metal Lover (talvez a melhor música da carreira), ou Scheiße (o hino feminista de Gaga que, infelizmente, não foi single). Embalado em um techno gótico, a artista coproduz o disco ao lado de Fernando Garibay, DJ White Shadow e RedOne, e consegue transparecer as intenções do LP através da diversidade de sons, modulações vocais e temas, e, ainda assim, encontrar uma linha para fazer com que aquelas canções pareçam pertencer ao Born This Way e nenhum outro álbum.
Os clipes também ajudam a construir o universo criado pela Mãe Monstro, como a já citada incubadora da raça alienígena sem preconceitos da faixa-título. Judas coloca Gaga como Maria Madalena e reconta o apócrifo bíblico de sua relação com Jesus, em uma analogia ao amor proibido, dualismo entre o bem e o mal, e a má interpretação da figura feminina, subvertendo as ferramentas opressoras da religião. The Edge of Glory evoca a energia de I Will Survive e coloca a cantora para dançar vestida com strass e spikes por uma Nova York iluminada por luzes rosas e roxas (quer algo mais gay que isso?). Em Yoü and I, Gaga apresentou ao mundo seu alter ego drag king, Jo Calderone, que chegou até mesmo a performar no VMA de 2011.
Marry the Night, último single da era, é uma síntese do Born This Way. O curta-metragem, dirigido pela própria artista, reconta sua trajetória antes do início da carreira e cola todas as peças que constituem o álbum. Em entrevista, a nova-iorquina compartilhou relatos sobre abusos sexuais que sofreu quando tinha 19 anos, e, aparentemente, Gaga usou de sua arte para reinterpretar esses eventos no clipe. Esse, que é um dos trabalhos mais pessoais da carreira, e se mostra ainda mais significativo agora, por dividir seus traumas com o mundo para se curar, sonhar com um futuro melhor, e inspirar vítimas de violência a buscar forças e não desistir de viver.
BORN THIS WAY BALL TOUR
Debaixo de holofotes pesados e enfrentando um frio de quase 10 graus negativos, Gaga fez um dos shows mais importantes de sua carreira na noite de 12 de dezembro de 2012, em Moscou, na Rússia. Sob ameaças de ser processada e presa por propaganda gay, a artista, mesmo assim, levou a Born This Way Ball Tour para o gélido país do leste europeu, onde é crime desde o início dos anos 2010 fazer qualquer menção pública pró-pessoas LGBTQIA+. Isso não impediu ela de transmitir a mensagem principal de seu trabalho. Do fundo dos pulmões, a artista e ativista gritou noite adentro, para um estádio lotado, palavras de ordem contra o governo russo: “Eu acredito que tanto homens quanto mulheres merecem amar uns aos outros igualmente. Me prendam, Rússia!”.
Para promover o disco e levar sua mensagem de aceitação e luta, Gaga saiu em turnê mundial e passou por seis continentes. Expandindo a história contada no clipe de Born This Way, o show deu vida ao universo de G.O.A.T., por meio de um palco em formato de castelo medieval e uma narrativa regada de teatralidade. Foi criada uma área especial na frente da pista premium reservada aos fãs que chegassem mais cedo (chamada de The Monster Pit), que também possibilitava a chance de alguns serem selecionados para conhecer a cantora nos bastidores, de graça.
Todos os elementos da tour foram pensados como uma experiência completa para os espectadores se sentirem integrados na mitologia do Born This Way, materializando o culto que Gaga construiu a cada noite de apresentação. O espetáculo teatral mostrou que a grandiloquência da artista não conhece limites, e, além do gigantesco castelo interativo colorido por diferentes jogos de luz, a mente da Haus colocou no palco seu melhor. Um cavalo mecânico, uma vagina gigante, manequins sobre rodinhas controlados a distância, uma moto em que Gaga deitava em cima e se transformava no híbrido da capa do disco para passear pelo palco, um sofá de carne (de mentira, dessa vez), um rosto suspenso em uma caixa de vidro que conversava com o público, e a lista vai longe.
A Born This Way Ball Tour marca, também, a última vez, até agora, que Gaga performou no Brasil. Passando por três cidades brasileiras em novembro de 2012 (Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), a artista encontrou o maior público na capital paulista, se apresentando para mais de 52 mil pessoas, no Morumbi. Assim como nos outros shows da turnê, alguns fãs brasileiros foram convidados para sentar com Gaga no seu piano-motocicleta, e, no Rio, a artista chegou até mesmo a chorar enquanto conversava com o público. O Rock in Rio pode ter traumatizado os monstrinhos do Brasil, mas a Mãe Monstro, com certeza, leva lembranças inesquecíveis de quando esteve no país, tão eternizadas quanto a tatuagem em sua nuca.
A dedicação sem descanso da performer para com a turnê encerrou a BTWBT com um fim trágico: depois da apresentação em Montreal no dia 11 de fevereiro de 2013, Gaga revelou que estava com uma fratura no quadril desde dezembro, se agravando ao ponto que ela não conseguia mais andar. Todas as datas seguintes foram canceladas para que a artista pudesse passar por cirurgia e iniciar o tratamento.
THIS ALBUM IS FOR Ü
Esse álbum é para vocês. Quando se abre o encarte da versão física do Born This Way, essa é a primeira mensagem que se lê. Declarando um disco inteiro para os fãs, Gaga colheu os frutos de criar uma rede de apoio para seus seguidores, e consolidou o suporte incondicional de seus monstrinhos. Ela sempre soube que, para enfrentar o mundo real, é necessário uma jaqueta de couro simbólica para se proteger da rejeição quando se é diferente.
Em uma nota pessoal, o Born This Way é, provavelmente, o álbum mais importante da minha vida. Aos 11 anos, ouvir de alguém que eu admirava que estava tudo bem ser eu mesmo e que havia beleza no que me fazia diferente dos outros, me deu força para não ceder à autodestruição causada pela homofobia e a pressão de não se encaixar na heteronormatividade. Me fez conhecer outras pessoas que estavam passando pelas mesmas coisas que eu e também encontraram conforto na mensagem do disco, como um dos meus melhores amigos até hoje. Me fez viver um dos dias mais felizes da minha vida no show da turnê em São Paulo. Me fez perceber que eu não estava sozinho, e que poderíamos ajudar uns aos outros.
Born This Way é sim um projeto pensado para os little monsters, mas, antes disso, é um excelente disco pop, impecável em sua construção sonora e estética, e que vai envelhecer como um dos melhores trabalhos de Gaga, se não o melhor. Divisor de águas na carreira, polêmico e arriscado, mas gigantesco em sua ambição e proposta. A igreja de Lady Gaga agora se coordena sozinha, e aqueles jovens de 2011, que ainda carregam o suporte que o álbum possibilitou a eles, encontraram um mundo um pouco mais fácil de sobreviver. É como fechar os olhos e sentir a jaqueta de couro invisível sobre meus ombros.