Gustavo Alexandreli
No meio cinematográfico, adaptar ou recontar uma história já existente no mundo real pode ser uma tarefa árdua. Em Bohemian Rhapsody, lançado em Novembro de 2018, a dupla direção de Bryan Singer – demitido próximo ao fim da produção – e Dexter Fletcher teve o desafio elevado a um patamar extremamente alto: contar a trajetória de Freddie Mercury, um dos maiores nomes do rock, e da banda Queen, responsável por inúmeros clássicos e números expressivos no cenário musical.
Em pouco mais de duas horas de produção, Rami Malek, intérprete do astro, e o trio restante da banda conseguem permear pontos de extrema sensibilidade da vida real de Mercury e seu entorno. A interpretação, que acompanha também a agitação do cantor, não esquece a dramaticidade necessária para encantar aqueles que foram ao cinema e somaram mais de 910 milhões de dólares na bilheteria, ou os que ainda hoje acompanham a jornada no streaming.
Não à toa, no caso de Malek, a atuação lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator no ano de 2019. Contudo, este não é o único ponto alto a se destacar no filme: sem dúvidas, a trilha sonora fala por si só. Produzida por Brian May e Roger Taylor, as faixas presentes no longa incluem a banda Smile, formada pelos artistas antes do Queen, além de apresentar versões nunca antes lançadas.
Também contemplada no Oscar, com os prêmios de Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som, os diversos sucessos e a forma como são introduzidos animam os espectadores, que podem acompanhar com palmas e batidas o ritmo de produção de Will We Rock You. Ou até mesmo, interagir com o astro em sua triunfal apresentação no Live Aid – desfecho do longa.
Porém, as escolhas, tão acertadas, também revelam um ajuste aparentemente improvisado dentro da produção. Considerando a adaptação, é fato que o livre rearranjo do enredo, assinado por Anthony McCarten, deve ser usado, mas o desencontro de datas e outras desconexões entre o mundo real e o cinematográfico, evidenciam uma escolha controversa na abordagem dos fatos – e desapontam fãs metódicos da banda.
Os encaixes na linha temporal de Bohemian Rhapsody são variados. A confusão cronológica pode ser percebida desde a época em que Freddie descobre o diagnóstico de HIV, no ano de 1987, assim como em datas simples, vide lançamentos de músicas, ou até mesmo na forma como a produção distancia eventos próximos como o Live Aid e o Rock In Rio. Ambos os shows ocorreram no mesmo ano, mas são retratados, respectivamente, como o desfecho e um evento médio na narrativa.
Contudo, nenhum dos pontos citados causa grande prejuízo. Levando em conta a opção de liberdade temporal exercida, as alterações contribuem para a chegada no forte desfecho de Bohemian Rhapsody: o imenso espetáculo Live Aid com uma performance forte de Freddie expõe um final animado e intenso ao grupo musical. No entanto, ainda assim, são evidentes as escolhas controversas em uma das maiores cinebiografias da história do Cinema – em suma, o enredo não segue fielmente a cronologia dos fatos.
Acompanhada deste elemento, ainda é necessário destacar que a obra também falha em aspectos relacionados à profundidade do conjunto musical e da própria narrativa de Freddie Mercury. Tratando-se de grandes compositores, a produção das canções no filme ocorre, em sua maioria, de maneira rápida e espontânea, haja vista que na realidade a tarefa era mais complexa.
Ainda focado nas escolhas narrativas, a forma com que a sexualidade de Freddie Mercury é abordada causa desgastes. Isto porque a trama foca na relação com Mary Austin e suprime a presença de Jim Hutton na vida do popstar. Além disso, a afirmação trazida de que o cantor não era bissexual, mas gay, também oculta uma terceira relação do vocalista – impondo um curso menos abrangente na construção da história.
Porém, um empecilho ainda maior deixa um sentido ambíguo na história: a separação do Queen. Este movimento nunca ocorreu. Partindo deste marco, é necessário ressaltar que a banda teve, sim, um período de férias em suas composições e gravações, justamente para a realização do disco solo de Mercury. No entanto, não uma ruptura culposa do artista principal como induz a abordagem utilizada no longa-metragem.
No entanto, isso não torna o filme dispensável. Assim como se traduzem nos números de bilheteria, o interesse por uma das maiores bandas da história e a sequência de destaques positivos em aspectos ligados essencialmente à Sétima Arte, Bohemian Rhapsody ainda se mantém com uma história forte com momentos emocionantes e apresentações nostálgicas após anos de seu lançamento.
Aos fãs das performances de Mercury e de sua voz marcante, Malek cumpre com maestria seu papel e entrega um tributo à altura do astro. Àqueles que buscam o fenômeno de Queen e poder se arrepiar com uma história marcante da banda, a narrativa também atende o esperado. Contudo, a consciência de receber uma trama rearranjada ao encarar as duas horas de Bohemian Rhapsody garante uma melhor experiência e, até mesmo, interpretação do que realmente ocorreu com o quarteto do icônico grupo musical.