Bebê Rena é o retrato de uma sociedade corrompida pela obsessão

Cena da série Bebê Rena. Na imagem, Donny, interpretado por Richard Gadd, um homem branco de cabelos e olhos claros, está sentado em um sofá olhando para algo que está atrás da câmera. Ele é um humorista, por isso, veste um terno xadrez todo colorido que se assemelha aos trajes de um palhaço de circo. Ao fundo, o cenário desfocado se trata de uma sala de madeira com sofás vermelhos e iluminação quente.
Bebê Rena estreou no streaming com pouca audiência até viralizar duas semanas depois (Foto: Netflix)

Nathalia Tetzner

Em 2024, a mensagem “Enviado do meu Iphone” – que, normalmente, acompanha os e-mails dos usuários de dispositivos da ‘marca da maçã’ – passou a aterrorizar as pessoas. O motivo é a minissérie britânica Bebê Rena, sucesso da Netflix que disputa 11 categorias no Emmy 2024. A trama, inspirada no caso verídico de stalking ocorrido com o ator Richard Gadd, esbarra em temas extremamente sensíveis e coloca em discussão o modo como a obsessão corrompeu a nossa sociedade, principalmente com o avanço da tecnologia e a consequente deturpação do limite que separa o real do virtual.

Vivemos em um universo volátil. A cada dia que passa, novas oportunidades e evoluções florescem frente a nós. No começo da década de 2020, em especial, a inteligência artificial generativa deu ‘pano para manga’ no tópico do questionamento da realidade e das fronteiras éticas da relação entre homem e robô. Com isso, para além da banalização do termo ‘hiperfoco’ pelas redes sociais, é fácil ficarmos obcecados por qualquer coisa e, até mesmo, por pessoas – desde aquelas que conhecemos até as que nunca encontramos nem nos nossos sonhos mais fantasiosos, porém, que estão ali, há um click de nós.

No entanto, há quem desafie as leis dos direitos fundamentais e, por motivos psíquicos ou de má índole, interfira no cotidiano e nas relações dos seres humanos. Essa é a premissa de Bebê Rena, um retrato tão desconfortável que obriga a audiência a assistir todos os sete episódios o mais rápido possível, a fim de acabar logo com o sofrimento de acompanhar a trajetória de um alvo de stalking. Com altos e baixos dignos de um seriado de streaming – há momentos de dramatização excessiva –, a produção original do ‘Tudum’ faz valer a indicação de Melhor Série Limitada ou Antologia pela premiação mais tradicional da Televisão estadunidense. 

Cena da série Bebê Rena. Na imagem, Martha, interpretada por Jessica Gunning, uma mulher branca de cabelos e olhos claros, está sentada em uma lanchonete com Donny que, por sua vez, está de costas para a câmera, que os captura a partir do busto. Martha está com um olhar de expectativa e, ao fundo, é possível perceber silhuetas desfocadas dos demais clientes do local.
Na ‘vida real’, Richard Gadd recebeu 41.071 emails, 744 tweets, 46 mensagens no Facebook, 106 páginas de cartas e 350 horas de mensagens de voz de sua stalker (Foto: Netflix)

A relação de Donny (Richard Gadd) com sua stalker ultrapassa tempo e espaço. Em Baby Reindeer (no original), Martha (Jessica Gunning), não coincidentemente  tem muitas horas livres e mora na mesma cidade de sua vítima. O roteiro, escrito pelo próprio Gadd, faz um trabalho praticamente inédito em relação a abordagem do ‘stalking’; termo popularizado pelas produções hollywoodianas e criminalizado pela Lei brasileira 14.132/21, sendo definido como a perseguição e ameaça à liberdade comportamental da vítima em ir e vir. Assim, o humorista mostra as nuances da condição humana em um texto que não recai no maneirismo da vilã e do ‘mocinho’.

Justamente por não limitar o enredo a uma dualidade de perspectivas, a obra disputa a estatueta do Emmy de Melhor Roteiro em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme. Com chances de vitória significativas, os diálogos e linhas de raciocínio, ambos bem elaborados, são explorados pela visão invasiva e nem um pouco contemplativa de Weronika Tofilska e Josephine Bornebusch, que se dividem no comando dos capítulos. O modo nada delicado que elas adentram o mundo de Donny e o cercam com o enquadramento fechado, quando Martha se aproxima dele, também garantiu a nomeação de Tofilska e Bornebusch como Melhor Direção em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme.

“Stalking, na Televisão, tende a ser muito sexualizado. Tem um ar místico. É alguém em um beco escuro. É alguém que é muito sexy, muito normal, mas depois fica estranho aos poucos. Mas a perseguição é uma doença mental. Eu realmente queria mostrar as camadas disso de uma forma humana que eu nunca tinha visto em uma produção”.

– Richard Gadd em entrevista ao Tudum, da Netflix.

Já no campo das atuações, o elenco entrega uma performance impecável, capaz de despertar empatia e repulsa nos momentos certos. Cientes de que interpretam personagens redondas, os atores se alternam entre expressões faciais e corporais completamente diferentes, seguindo o ritmo da descoberta das fases distintas da vida do protagonista. Richard Gadd revive nas telas o que podem ser considerados os piores momentos de sua vida com uma coragem invejável, que o coloca no páreo pelo título de Melhor Ator em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme. Ao seu lado, Jessica Gunning se entrega para viver Martha, deixando para o telespectador uma entrega à Arte de mestre.

No papel de uma stalker sem escrúpulos, Gunning não mede esforços para destruir qualquer relação íntima do protagonista de Bebê Rena. Nesse caso, Teri (Nava Mau), interesse amoroso de Donny, é uma pedra em seu sapato. Os encontros entre as duas são tensos e extasiantes, deixando nítido que as atrizes realmente merecem as vagas em Melhor Atriz Coadjuvante em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme. Não menos genial, Tom Goodman-Hill – indicado como Melhor Ator Coadjuvante em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme – interpreta Darrien, um indivíduo desprezível, que funciona no roteiro como a personificação da maldade intrínseca à farsa da fama e status, um ideal que a indústria do entretenimento mundial sempre vendeu aos jovens artistas.

Cena da série Bebê Rena. Na imagem, Donny, interpretado por Richard Gadd, um homem branco de cabelos e olhos claros, e Teri, interpretada por Nava Mau, uma mulher mexicana de cabelos e olhos escuros, estão encostados no vagão de um metrô. Eles se entreolham sorrindo enquanto a câmera os captura a partir dos ombros. Ao fundo, o cenário desfocado revela silhuetas de passageiros.
A atriz Nava Mau, que interpreta Teri, é a primeira mulher trans a ser indicada como Melhor Atriz Coadjuvante em Série Limitada ou Antologia ou Telefilme na história do Emmy (Foto: Netflix)

Ainda que a obra apresente algumas falhas de concepção, que justifiquem o fato de não agradar a todos os públicos, ela tenta vencer a superficialidade do meio em que se reproduz. Isso, por si, é um esforço notável e digno de reconhecimento. Apresentando os mesmos ‘erros’ que seu protagonista, como a representação um tanto quanto clichê das mulheres trans e a exposição pouco cuidadosa de temas sensíveis, Bebê Rena consegue abrir a discussão sobre questões fundamentais que percorrem a sociedade atual, entre elas, a urgência da obsessão, fator que nos corrompe como nunca antes. Afinal, pouco tempo após a viralização da produção nas redes sociais, a mídia logo voltou a atenção à mulher que inspirou Martha; uma prova do quanto estamos longe de compreendermos coletivamente o perigo do stalking, embora a minissérie tenha contribuído para colocar em xeque o imaginário popular, acostumado com abordagens levianas do tema.

 

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