Batman vs Superman: Uma lição de Umberto Eco sobre os mitos contemporâneos

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Eli Vagner F. Rodrigues

A estreia da semana “Batman vs Superman” consolida tanto a disputa DC vs Marvel no calendário anual dos blockbusters derivados dos quadrinhos quanto recoloca em cena dois dos mais lucrativos heróis da história do cinema. O filme, mais uma vez, vai dividir o público, não somente entre os que torcerão para o homem-morcego, herói sem poderes adquiridos, que conta apenas com sua força humana, notável inteligência e obstinação e os que torcem para o virtuoso alienígena semideus, dotado de força quase ilimitada, poderes ultra-humanos.

Além desta divisão características do universo dos fãs, prevemos uma divisão entre a crítica. De um lado os críticos que consideram os filmes de heróis um filão mais do que previsível, mero entretenimento sem inovações no campo da arte cinematográfica e de outro os que consideram o fenômeno uma atraente renovação no cenário da cultura contemporânea. Estes últimos consideram Christopher Nolan, Brian Singer e Zack Snyder, diretores cujas obras levaram o universo das artes sequenciais (quadrinhos) a um nível superior de expressão artística. A crítica negativa se baseia na suposta facilidade que estes diretores encontram ao trabalharem com esses “mitos modernos”, e com estórias que já foram “testadas” no mercado mundial das Comics. Na lógica deste mercado o público já estaria garantido há décadas e o exército de fãs faria a multiplicação de valor que se verifica nos dias de hoje, em todos os sentidos da palavra, seja econômico, seja estético. Se o fator econômico é indiscutível (lucro certo) a apreciação do valor estético sofre o influxo massivo das novas ondas culturais geek, nerd, sci-fi, gamer, que com a escalada exponencial da tecnologia e da informatização do mundo só tende a crescer. Existe um nexo entre o universo da tecnologia e da informática com o mundo da ciência e este, por sua vez, tem uma relação de consumo direto com o universo criativo representado pela ficção científica, ficção de fantasia, séries, quadrinhos, etc. As editoras que exploram estes filões editoriais dobraram seus títulos nos últimos anos. Este universo de fãs e novos leitores é mais crítico do que podemos pensar, mas a visão crítica não costuma superar o entusiasmo. A crítica, no caso, está mais ligada à lógica do “poderia ser mais fiel”, ou “distorceram a personagem”, característica dos fãs que querem afirmar seu conhecimento diante da legião de leigos.

Esta esperada controvérsia, e a divisão da crítica, inevitavelmente nos lembra o famoso livro de Umberto Eco “Apocalípticos e Integrados” que, injustamente, como o próprio autor ressalta, “tenta subsumir atitudes humanas, com toda sua variedade e seus matizes, sob dois conceitos genéricos e polêmicos”. Mas é também nesta obra que Eco dedica um longo e interessante capítulo ao mito do Superman, que pode nos interessar nesta semana de estreia.

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O mito do Superman

Eco define a mitificação como uma simbolização incônscia, uma identificação do objeto com uma soma de finalidades nem sempre racionalizáveis, projeção de uma imagem de tendências, aspirações e temores particularmente emergentes num indivíduo, numa comunidade, em toda época histórica. Temos, portanto, nossos mitos. Mas ao mesmo tempo que temos mitificações em várias culturas e épocas, temos também o fenômeno da desmistificação. Quando falamos de desmistificação, explica Eco, nos referimos a todo processo de dissolução de um repertório simbólico institucionalizado, o que ocorreu, por exemplo, com alguns elementos da cristandade.

O Superman representa de maneira exemplar um mito moderno. O herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular. Hércules, Sigfried, Pantagruel e mesmo Peter Pan compõem, entre muitos outros, este conjunto de projeções humanas. O que se nota em todos estes heróis é que frequentemente suas virtudes se humanizam e o que se valoriza nas estórias seria a potencialização de algum poder meramente humano. No caso do Superman este poder está ligado às virtudes morais. A aproximação entre o herói e o leitor se dá no campo da possibilidade. O homem comum pode exercer a mesma virtude, aquela que dará o desfecho mais importante da história e ela, muitas vezes, não é baseada na força física ou em características supra-humanas. Outra característica destacada por Eco é que o Superman não é humano, é um alienígena, mas chegou à terra criança e foi criado (humanizado) por pais humanos, gente simples, do campo, honesta e virtuosa. No trabalho é um tanto atrapalhado, não tem projeção social relevante e é míope, apesar de ter uma visão de raio-X. Constrói-se um mito, também, pela identificação e aproximação. O indivíduo comum, funcionário, sem recursos, dotes e força, se identifica imediatamente. Vale dizer que boa parte do que é atribuído aqui ao Superman compõe a caracterização de Batman uma vez que o homem-morcego também é um importante mito deste universo. Criado por Bob Kane em 1939, incorpora uma imagem moral também bastante rigorosa e desenvolveu, sob a pena de vários roteiristas, uma espécie de coerência pragmática ao longo de 70 anos. O elemento que enriquece a caracterização da personagem é a complexidade psicológica determinada por traumas, personalidade obsessiva, e os limites entre sanidade, loucura e delírio. Hoje, depois de certo desgaste da personagem, parece sofrer de uma síndrome da dualidade herói-vilão e se vê quase obscurecido por seu arqui-inimigo Coringa, que em várias estórias, tanto dos quadrinhos como das adaptações para o cinema, notadamente constitui o foco dramático em detrimento do próprio herói.

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Mas é em outro ponto que que Eco nos brinda com uma compreensão original, visto que até agora, basicamente, só repetimos o que é de conhecimento de todos.

A personagem do herói mitológico característica da mitologia antiga é sempre identificado pelo que fez no passado. Sua caracterização, suas qualidades, seu perfil heroico está baseado na sua estória pregressa, suas realizações, seus feitos. Emblemática e didática é a figura de Hércules que era conhecido por suas façanhas (os doze trabalhos). Mas não é somente Hércules que carrega esta caracterização, Odisseu (Ulysses), Teseu, Perseu, Ariadne (porque não?), Ajax, Aquiles, até mesmo Édipo, samurais. Sobre estes heróis conta-se sempre a mesma estória, a saber a estória de seus feitos no passado. O curioso é que sempre ouvimos a mesma estória e revivemos o mito com interesse. Neste registro o herói tem como caracterização sempre as mesmas qualidades e ele deve revela-las no momento em que forem exigidas na trama. A característica do herói o define. Se Hércules perder a força ele deixa de ser Hércules, se deixar de ser um semideus ele não é mais o mesmo. Portanto o herói está preso a uma estrutura fixa. Eco denomina esta característica de uma “fixidez emblemática que o torna facilmente reconhecível”. O mesmo acontece com o super-heróis modernos. O Superman está preso em uma estrutura de comportamento e de poderes que determinam suas capacidades de ação e, portanto, as possibilidades da trama.

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Para Eco, no entanto, a personagem mitológica de quadrinhos encontra-se em uma situação singular:

“Ele deve ser um de arquétipo, a soma de determinadas aspirações coletiva e, portanto, deve necessariamente se imobilizar numa fixidez emblemática que o torne facilmente reconhecível, mas é comercializado em um âmbito de uma produção romanesca”.

Este âmbito da produção romanesca exige a novidade e o inaudito, o inesperado e a surpresa do roteiro. Os exemplos dados por Eco nos bastam para entender a lógica e estrutura da civilização do romance.

Quando os detetives descobrem o culpado (Sherlock Holmes, Agatha Christie), quando Javert paga sua dívida de gratidão à Jean Valjean (Os miseráveis), quando a aventura dos três mosqueteiros continua em Vinte Anos Depois, quando Edmond Dantès, O Conde de Monte cristo, finaliza sua estória, assistimos um lance teatral cuja imprevisibilidade faz parte da invenção. Nesta tradição o interesse maior do leitor é deslocado para o que acontecerá e, portanto, para a invenção do enredo, que passa para primeiro plano. O acontecimento não aconteceu antes da narrativa, ocorre enquanto se narra e, muitas vezes, o autor, em certos momentos, não sabe o que acontecerá. Quando acompanhamos inúmeros desenlaces das estórias, muitas vezes inesperados, este truque dramático passa a ser esperado em outras obras. Este recurso parece viciar o leitor. Vale notar que a curiosidade é irmã do ato de consumo. Forma-se o cenário de sucesso da produção cultural romanesca. Consumimos novidades, surpresas, novas possibilidades de desfechos narrativos. O jogo determinado pelo consumo de produtos culturais e a surpresa, inovação ou novidade que ele proporciona, alimenta a mesmice cotidiana com alguma diferença momentânea. Por esta razão a palavra “spoiler” se tornou tão popular entre os adolescentes.

“O termo se refere a qualquer fragmento de uma fala, texto, imagem ou vídeo que se encarregue de fazer revelações de fatos importantes, ou mesmo, do próprio desfecho da trama de filmes, séries, desenhos animados, animações e animes, conteúdo televisivo, livros e videogames em que, na maioria das vezes, prejudicam ou arruínam a apreciação de tais obras pela primeira vez.”

O consumidor não quer spoilers, quer sentir a emoção da surpresa até o último momento, até a revelação. Neste ambiente o trailer ganhou uma versão mais enxuta, o teaser. O Teaser (em inglês “aquele que provoca” (provocante), do verbo tease, “provocar”) “é uma técnica usada em marketing para chamar a atenção para uma campanha publicitária, aumentando o interesse de um determinado público alvo a respeito de sua mensagem, por intermédio do uso de informações enigmáticas no início da campanha.” As “informações enigmáticas” incitam a curiosidade, esta é movida pelo novo, pela novidade, pela surpresa.

Todo este aperfeiçoamento do mercado está diretamente relacionado com a estrutura romanesca. Segundo Eco, essa nova dimensão da narrativa é contrabalanceada por uma “mitificabilidade” menor da personagem. “A personagem do mito assume uma personalidade   estética, uma capacidade de tornar-se termo de referência para comportamento e sentimentos que também pertencem a todos nós. ” O cinema incorporou facilmente esta lógica.

Estas características contraditórias entre a fixidez das personagens e a necessidade de novas estórias e desfechos, a novidade esperada pelo público, levou os roteiristas de quadrinhos a verdadeiros malabarismos criativos. Esta limitação deu um impulso à imaginação. Assim criaram-se universos paralelos, realidades virtuais, viagens no tempo, linhas temporais distintas, crossovers, arcos e sagas com realidades muito particulares. Esse fenômeno transformou o universo em questão em uma área de especialização. O público preguiçoso que acompanhava as tirinhas dos jornais não deixa de existir, mas surge também um público voraz, nada preguiçoso, de aficionados que se especializa. Os aficionados, os fãs (fan-fanatic) se dedicam integralmente ao seu objeto. Pode-se questionar a qualidade “literária” do que consomem, não sua dedicação ao objeto de culto.

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Mas voltemos a Metrópolis, ao Daily Planet e às estratégias romanescas de hollywood frente à fixidez dos mitos modernos.

A curiosidade que paira sobre a estreia da semana, pelo menos para o público que não conhece de antemão as estórias, sagas e arcos das HQs, além do nosso condicionamento de obrigatoriedade de consumo dos blockbusters, é algo que está relacionado com a análise de Umberto Eco. Boa parte do público pode ir ao cinema pensando em como dois heróis de caracterização moral tão rigorosa, e parecida, na construção de suas mitologias pessoais, poderiam entrar em conflito. O que deve ter ocorrido para que dois bons moços como Bruce Wayne e Clark Kent, vigilantes da justiça, entrem em conflito. Além disso paira, também, a curiosidade sobre como um mero mortal enfrentará um semideus. Em outras palavras, a novidade e a necessidade de reinvenção, neste caso, já está implícita no próprio título do filme.

 

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