Egberto Santana Nunes
Depois de meses trilhando festivais e colecionando prêmios pelo mundo, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles desembarcam no Brasil, país onde nasceu, cresceu e se inspira Bacurau, o mais novo longa-metragem dos recifenses, em parceria com Sônia Braga (Aquarius, 2016) e Emilie Lesclaux na produção. O Persona esteve na cabine e coletiva de imprensa em São Paulo, nessa última terça, 20, e atesta sucesso e expectativa do maior nome do cinema nacional contemporâneo.
A jornada começou em maio, no festival de Cannes, principal mostra de cinema do ano. Concorrendo na seleção oficial, Bacurau levou o prêmio do júri, equivalente ao terceiro lugar na competição. Depois veio Munique, na categoria Melhor Filme Internacional. Competiu em Lima, Sydyney, Suiça. O último destaque foi na abertura de Gramado, principal festival brasileiro. E onde passa, arranca palmas da platéia.
Não foi à toa essa conquista. A ideia traçada aqui é calcada no conflito de resistência e subjugação, um conto encontrado em diversas culturas. A diferenças está no personagem e na região de nossa história: um povoado do sertão nordestino. Há anos deixado às margens e sofrendo nas mãos de grandes coronéis. Em Bacurau, nome da região protagonista da história (e um pássaro na vida real), o estopim dessa guerra é dado logo após a morte da matriarca do lugar, e em seguida, o sumiço da cidadezinha do mapa. Os moradores são testemunhas de estranhos acontecimentos e se unem em prol da resistência.
Se o Brasil tem de muito na história contada, a fonte bebida por KMF e Juliano é de certo americanizada. Desde a ambientação, concentrada nos aspectos do western de Sam Peckinpah, até na sinistra direção e construção do horror, trazidas pelos clássicos do mestre John Carpenter. Glauber Rocha, como sempre, há de estar presente, o sertão no cinema é fruto do seu trabalho, porém, o olhar nordestino aqui traz uma distopia poderosa sobre nosso país, capaz de ser entendida e identificada em qualquer marca do tempo.
Tem quem diga que Bacurau é um protesto contra o governo atual, desejosos por mais uma manifestação tão poderosa quanto à dos cartazes do Impeachment da ex-presidente Dilma Roussef. KMF já disse, em resposta: “Nosso protesto será exibir um filme foda sobre o Brasil”. E, de fato, é. Mas nunca centrado apenas na nossa ideia atual de país. Bacurau está sendo feito há anos. No início da coletiva, o diretor já comenta que são quase 10 anos de realização. De lá para cá, muita coisa mudou. Porém, a história de Bacurau, o povão em guerra contra o estrangeiro, vem se repetindo há bastante tempo.
Os problemas também não são nada novos. As alegorias da trama poderiam ser identificáveis em qualquer momento de nossa história, o quê muda agora é que os personagens são cada vez mais reais. O Brasil de Bacurau é preto, pobre, retinto, como sempre foi. Seu inimigo? O gringo (no western nacional, o oponente nunca será o índio). Vilanizado na figura potente de Michael, interpretado por Udo Kier (ator alemão conhecido por trabalhos com John Carpenter e Lars Von Trier), misterioso líder do grupo inimigo na história. Nesse núcleo se concentra a camada de ficção científica do texto, com pequenos elementos sugestivos de um futuro distante na história, mas também muito próximo de nossa realidade.
Entre tantas cenas violentas durante o longa, Udo protagoniza as mais ferozes e a mais significativa ao lado de Sônia Braga, que faz Domingas, a médica da região. A entrada da musa do nosso cinema não poderia ter sido melhor realizada. Ela surta com o enterro de Camelita, mas é ela quem assume a postura de cuidadora de Bacurau, seja no sentido de saúde ou de bem estar.
Sônia foi quem mais falou durante a coletiva, esbanjava risadas, sorrisos e uma simpatia enorme por todos ali presentes. A atriz de Dona Flor e seus dois maridos, sucesso de público (não de bilheteria, como diz a própria) por anos, ressaltou a sua fala da coletiva de Gramado: “Domingas, minha personagem, eu dediquei a Marielle e eu quero saber sim: quem mandou matar Marielle?” Ex-deputada pelo PSOL, Marielle Franco foi executada no Rio de Janeiro em 14 de março de 2018 e seu assassinato segue sem resposta.
Nem só de Sônia vive Bacurau. É em Silvero Perereira, LGBT, negro e cearense, que temos a figura de Lunga. Um anti-herói exilado de Bacurau, prefere sustentar seu passado tenso no isolamento. Com sua chegada, a trama e o gênero do longa mudam e nascem grandes cenas de ação dignas do faroeste americano. Já Acácio (Thomas Aquino), toma as rédeas da cidade, mas é perseguido por memórias criminosas e arrependimentos. Os dois pegam em armas e mudam a história do povoado.
Aqui, o diálogo pouco importa, a ação impacta e comove, e se você desconhece as falas, sugiro que vá procurar no povoado mais próximo. Temos que destacar também a presença de Tereza, par de Acácio e filho de Plínio, patriarca e professor da cidade. A relação e papel dos dois aqui está no outro lado do discurso, o do amor, educação e cultura na resistência. Não se incomodam com a violência, mas estão apoiando outro lado da mesma moeda.
E se a ação incomoda, é no som que ela se sustenta. Kléber e Juliano inclusive enviaram flyers para as redes de cinema aumentarem o som nas sessões, para uma melhor imersão na experiência. É impossível dormir em Bacurau, você é acordado a cada segundo. O Som ao Redor (2012) traz o dito elemento no título, Bacurau traz em seu espaço.
“É um som de filme de ação brasileiro, que talvez ainda não tivesse sido feito”, comentou o diretor na coletiva, cuja inspiração técnica vem de obras americanas dos anos 70. E desde os tiros, até as minuciosas inserções da MPB ali presente, ou a clássica Night de John Carpenter, assustam e emocionam quem assiste, além de marcar a assinatura do “Mendonçaverso” (nas palavras emprestas de um dos jornalistas ali presente).
Kléber também aumenta sua obsessão por zoom, trazida de sua pequena grande filmografia. A câmera raramente se fixa em um ponto, e carrega todo o ambiente e personagem, navegando pelo terreno e aproximando o foco da sua atenção para algum ponto da tela, seja um furo, a chegada ou saída de um personagem. Tal estilo cria um filme de gênero completamente único na sua concepção, texto, formato e mensagem.
Política e mensagem
Não faltaram questionamentos sobre a crítica ao governo Bolsonaro na coletiva. E também não ficou de fora cutucadas e pinceladas ao nosso momento atual do país. Muitos queriam saber como o presidente reagiria ao filme. Kléber foi enfático: “A gente não tem jurisdição para saber o que o presidente vai achar do filme” E Juliano seguia na mesma linha: “Eu acho extremamente legítimo e justo que as pessoas digam que Bacurau é premonitório. Agora, querer que a gente faça previsões aí eu já não acho justo.”
A situação do cinema nacional também foi bastante discutida. Emilie Lesclaux, produtora do filme, comenta que no cenário atual não seria possível nem a captação de recursos, pois órgãos responsáveis pela realização do filme como a Petrobras, já nem estão lançando mais editais de cinema e patrocínio culturais. Emilie também ressaltou o filtro aos filmes com personagens LGBTs, o quê também impediria o nascimento do filme.
Logo em seguida, Thardelly Lima (o prefeito Tony Jr no filme) lembra do caso recente do edital do Banco do Brasil, que perguntava se o produto cultural teria “cenas de nudez ou de sexo explícito”, se “a obra faz referência a crimes, drogas, prostituição” e se “tem cunho religioso ou político”. Spoiler? Bacurau assinalaria X em todas as opções.
Sobre o assunto, Kléber foi bastante claro: “Na Constituição de 1988 diz que não há censura.Não há censura. Não há censura.” E Sônia, seguiu na dianteira e interpelou: “Censura nunca mais, gente!”
Porém, não foram somente momentos difíceis durante a conversa com os jornalistas. O elenco ressaltou a importância que teve Palheiras, cidadezinha onde o filme foi gravado, com a presença dos moradores como figurantes e pequenas pontas como atores. Sônia comentou que mantém contato diário com o pessoal de lá, e na hora soltou a notícia da conclusão da reforma da estrada que levava o elenco até o local, e todos sorriram pela boa novidade. Hoje (22), inclusive, será feita uma sessão na cidade, que fica no Sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte.
Bárbara Coen comentou que no final das gravações, a comunidade entregou o poema para a equipe. “Foi um momento muito bonito e me fez pensar na complexidade daquele engajamento.” Juliano ressaltou o nível de comprometimento e adesão da comunidade. “A gente falava sobre a história, e além deles entenderam a história, eles conheciam a história. Aí acabou.”
Entre tantas críticas, elogios e debates, o clima é de sucesso e esperança. A expectativa é na escolha brasileira para a representação no Oscar 2020. A lista já saiu, e Bacurau está em boa companhia: “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Karim Aïnouz segue no páreo na disputa. O longa foi vencedor na categoria Um Certo Olhar, também no Festival de Cannes. A esperança é que o governo federal não interfira na escolha final, e dessa forma, ajudando no caminho do Brasil para a estatueta de ouro.
Prêmios e debates fizeram de Bacurau o longa nacional mais bem comentado no ano. O boca a boca foi essencial, tivemos até memes. E vivemos a época mais difícil para a classe artística. A safra, pelo contrário, segue firme e forte. KMF e Juliano fazem um clássico instantâneo que ficará para sempre na memória do nosso cinema puro e brasileiro.