Egberto Santana Nunes
Se existisse um prêmio real para o artista do ano, Donald Glover provavelmente estaria cotado e até mesmo ganharia. Digo “real” porque o VMA (Video Music Awards) tem essa categoria em sua premiação, mas a gente ignora pois é o VMA. Além de ter todo um outro embasamento, voltado ao mundo da cultura pop e os abalos na indústria. A questão aqui é que Glover se catapultou no mainstream de uma forma que ele não só fosse o assunto do momento, como também fez com que fossem discutidos outros temas bem mais problemáticos. E é claro, no final de 2018, na retrospectiva feita por diversos canais, “This is America” estará lá sendo reprisado e discutido. Mas hoje o assunto não é o ótimo clipe de Gambino e, sim, seu mais não tão novo trampo, a série de TV Atlanta.
O enredo acontece na cidade que dá nome ao show, entre os locais mais periféricos do território, e segue Earnest “Earn” Marks, interpretado por Glover, um jovem pai sem grana que vive de aluguel numa relação conturbada com a namorada. Para melhorar a sua vida, ele encontra o novo rapper em ascensão de Atlanta, Alfred “Paper Boi” Miles (Brian Tyree Henry), seu primo distante e que mesmo com um hit local vende maconha nas horas vagas para completar a renda.
Essa é a premissa inicial da série. O cast ainda inclui Darius (Lakeith Stanflied), quiçá o melhor personagem da trama, sempre chapado, fazendo alguma coisa e com a mente em outro planeta, que curiosamente estrela o episódio mais estranho de todo o show. Temos também Van (Zazie Beetz), a namorada de Earn que tenta consertar a relação pensando sempre na filha do casal enquanto cuida de si mesma.
Twin Peaks com rappers, como Donald Glover prefere chamar a sua criação, repete as principais indicações (e vitórias) da edição anterior do Emmy nessa segunda temporada. Tanto nos prêmios técnicos quanto em categorias como atuação, direção e escrita, Atlanta está presente, até mesmo competindo contra si mesma (“Alligator Man” e “Barber Shop”), sem contar a categoria principal de comédia (oque muitos podem estranhar, afinal, de comédia a série tem muito pouco).
A segunda temporada estreou em março de 2018 e trouxe como tema principal o roubo. De forma peculiar, ela começa com um assalto, mas nem todos os episódios essa referência é explícita, já que não importa se é material ou imaterial para ser roubado ou explorado.
No começo dos anos 2000, Glover compunha o trio de comediantes do grupo de esquetes Derrick Comedy. Suas habilidades no meio chamaram atenção de Tina Fey, que o contratou para a mesa de roteiristas de 30 Rock, para logo alguns anos depois ele ficar conhecido como o Troy de Community. Junte seu timing no humor, crítica aguçada, uma imensa criatividade e a parceria com um diretor meio desconhecido e você terá Atlanta.
Desde o primeiro momento, uma sensação de estranhamento é causada ao começar a série – e esse sentimento é apenas ampliado no decorrer. A risada vem precedida de uma expressão séria e triste do espectador. A quase ausência de trilha sonora contribui para a construção dessa atmosfera, assim como as cores escuras e planos longos que pegam todo o cenário. É raro ver um dia florido em Atlanta. É a dramédia na sua mais perfeita forma.
Muito disso se deve à escrita e direção de Glover e Hiro Murai, seu parceiro desde os clipes do Childish Gambino. Em uma mistura de realidade e surrealidade, eles conseguem captar a atenção do telespectador para temas como raça, paternidade, violência e fama. O caso principal é a do seu primo rapper, que luta para sobreviver e estabelecer sua carreira, diferente do que o showbiz mostra. É incrível a capacidade criativa da dupla e impressionante como não se esgotam os direcionamentos tomados nas temporadas. Cada personagem tem seu espaço e é desenvolvido adequadamente, com episódios reservados para dissecá-los e apresentá-los melhor ao público.
Os três coadjuvantes protagonizam os momentos mais bizarros do show. Van encara uma balada com suas amigas em uma noite fora em busca de uma foto com Drake; Paper Boi protagoniza “Barber Shop” – competindo com “Alligator Man” em melhor roteiro -onde ele sofre bastante para apenas ter seu cabelo cortado, e Darius protagoniza “Teddy Perkins”, um dos momentos mais angustiantes da série, cujo capítulo foi ao ar sem comerciais e largou mão da comédia para entrar no mais cru suspense, com um pé no pós-terror, para usar um termo da moda.
A ideia de não ter intervalos contribuiu ainda mais para a imersividade desejada por Hiro Murai no episódio, cuja direção levou o prêmio desse Emmy por melhor fotografia em câmera única e melhor edição de som. Poderia enrolar e comentar aqui sobre a exploração do espaço negativo e o movimento de câmera entre o objeto de atenção do ator e o mesmo, mas é melhor deixar com o autor disso tudo, em sua aula de direção no canal da Vanity Fair.
Outro exemplo da bizarra realidade criada por Glover está no episódio “Rede Afroamericana de Televisão”, que, entre comerciais sobre carros e propagandas milagrosas, se concentra em um programa que mostra o caso de um jovem negro que se sente como um cara branco de 64 anos. Alfred cai na risada na bancada do talk show, cuja sátira faz referência ao caso real de Rachel Doze, uma americana caucasiana que se passou por negra e se diz transracial. É a famosa, dolorida e cruel inversão de papéis.
Cada episódio daria facilmente um textão e seria péssimo fazer isso aqui, estragaria toda a surpresa que espera por você ao assistir Atlanta e o texto ficaria ainda maior. E acredito ser esse o principal atrativo, a surpresa e a imprevisibilidade do estranhamento. Quem pensa que se trata apenas sobre raça, muito se engana. Como todos os personagens são negros, é como se fosse a sociedade vista por essa perspectiva, mas sem parecer algo forçado nem didático.
O que define Atlanta é o seu comentário social em cima de temas recorrentes pelo ponto de vista de um americano negro em busca de grana. Afinal, isso existe e acontece, não da forma surreal demonstrada, mas ainda assim real, mesmo que sem a devida atenção.
Em entrevista ao The Guardian, Glover diz que “não está fazendo uma série de TV e sim uma experiência”. Parece pouca pretensão para quem não quer explicar “This is America” – cujo vídeoclipe exprime muito do surrealismo falado aqui. Mas se olharmos para Atlanta como uma Twin Peaks com rappers, é de se perguntar porque David Lynch está perdendo o posto e não estamos dando importância a um dos shows mais estranhos da televisão.
Um comentário em “Atlanta: surrealismo e realidade em um mesmo plano”