Davi Marcelgo
No pódio dos filmes mais aguardados pelo público da programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Anora só fica atrás de Ainda Estou Aqui. O novo longa de Sean Baker (Projeto Flórida) faz parte da seção Perspectiva Internacional e narra a história de Anora (Mikey Madison), uma prostituta que é pedida em casamento por Ivan (Mark Eidelstein), um jovem russo podre de rico que está em temporada de férias nos EUA. Não demora muito para o sonho cor-de-rosa da personagem começar a desbotar.
Sabe aquela sensação de que tudo está muito bom para ser verdade? A primeira parte de Anora tem exatamente este sentimento, embora seu príncipe Ivan já dê sinais de desvio de caráter, quando trata ou fala mal dos funcionários de sua casa – a protagonista é da mesma classe social que eles. A dinâmica estabelecida é de tensão, procurando qualquer fagulha que vá expor a falsa felicidade do par. Ora, em uma Comédia romântica sempre há um segredo, uma diferença à la Romeu e Julieta para separar um casal. Porém, um anzol com uma picanha suculenta é arremessada para as poltronas do cinema, fazendo todo o público se deliciar com o jeito ‘bobão’ do par romântico e as cenas de ostentação do casal.
Neste início, o cineasta se afasta de suas origens de Cinema caseiro, que quase se confundia com documentário; a montagem é sofisticada, com muita rapidez e músicas pop, afinal, tudo aquilo é um encantamento que termina à meia-noite. Quando a relação vai por água abaixo, não é uma tradicional rivalidade de família, um intercâmbio ou a maldição de se transformar em ogro que barra o matrimônio, mas o fato concreto de diferenças de classe.
Neste segundo momento, o filme incorpora o espírito de Tangerine (2015), longa que Baker gravou com um Iphone. Nas ruas e estabelecimentos comerciais do cotidiano, o mundo urbano é set de filmagem para a explosiva perseguição por Nova York; Anora junto aos capangas da família de Ivan para encontrar o garoto. São muitos elementos em cena, pessoas falando por cima, gritos e violência, bem semelhante a história de Sin-Dee – e distante de um conto de fadas. Eliminando a decupagem estilizada, Sean Baker dá vida à realidade por meio de seu Cinema real, filmadora na mão e proximidade dos personagens. Às vezes, a câmera invade a mesa de pausa para o lanche.
O próprio gênero do filme muda, antes um melodrama, depois uma Comédia escrachada com tudo que SuperBad – É Hoje (2007) tem de mais absurdo e escandaloso. Assim, o filme desce do salto alto das produções de grande orçamento de Hollywood e abraça uma estilização e direção de Cinema independente. Nesta história de contradições, personagens diferentes e estilos opostos – um ‘filhinho de papai’ que casa-se com uma mulher que nunca viveu a ficção –, é interessantíssimo o texto, assinado por Baker, contar uma história clássica para um tempo moderno.
Ivan é como Peter Pan, um garoto que se recusa a crescer, só quer saber de ‘farra’, videogame e não quer trabalhar. Enquanto Anora é Cinderela, mas ao invés de limpar uma casa, ela precisa vender seu corpo. O envolvimento com a história da gata borralheira é tamanha que até um item precioso – como o ‘sapatinho’ de cristal – é perdido, porém, quando devolvido, a mágica não é restaurada e o ‘felizes para sempre’ fica para a Disney.
Os melhores filmes da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo possuem personagens humanizados, com histórias reais e, por vezes, trágicas. No Cinema contemporâneo, Sean Baker é um nome influente no cenário, seja em forma ou conteúdo. Assim, Anora é contagiagente, engraçado e até triste, sendo mais uma realidade excelente na prateleira dos novos contos de fadas.