Quando Peter Pan pede Cinderela em casamento, o resultado é Anora

Na imagem, Anora está centralizada, ela está dançando em uma balada com iluminação azul e roxa. Ela usa um vestido vermelho com toda região de tórax e peito descobertos. Ela está sorrindo e com os olhos fechados. Ao seu redor há outras pessoas, que seguram copos de bebida. Ela é uma mulher de pele clara, na faixa dos 25 anos, de cabelos longos, ondulados e escuros com algumas mechas de brilho rosa.
O filme foi vencedor da Palma de Ouro da 77ª edição do Festival de Cannes (Foto: Universal Pictures)

Davi Marcelgo

No pódio dos filmes mais aguardados pelo público da programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Anora só fica atrás de Ainda Estou Aqui. O novo longa de Sean Baker (Projeto Flórida) faz parte da seção Perspectiva Internacional e narra a história de Anora (Mikey Madison), uma prostituta que é pedida em casamento por Ivan (Mark Eidelstein), um jovem russo podre de rico que está em temporada de férias nos EUA. Não demora muito para o sonho cor-de-rosa da personagem começar a desbotar. 

Sabe aquela sensação de que tudo está muito bom para ser verdade? A primeira parte de Anora tem exatamente este sentimento, embora seu príncipe Ivan já dê sinais de desvio de caráter, quando trata ou fala mal dos funcionários de sua casa – a protagonista é da mesma classe social que eles. A dinâmica estabelecida é de tensão, procurando qualquer fagulha que vá expor a falsa felicidade do par. Ora, em uma Comédia romântica sempre há um segredo, uma diferença à la Romeu e Julieta para separar um casal. Porém, um anzol com uma picanha suculenta é arremessada para as poltronas do cinema, fazendo todo o público se deliciar com o jeito ‘bobão’ do par romântico e as cenas de ostentação do casal. 

Neste início, o cineasta se afasta de suas origens de Cinema caseiro, que quase se confundia com documentário; a montagem é sofisticada, com muita rapidez e músicas pop, afinal, tudo aquilo é um encantamento que termina à meia-noite. Quando a relação vai por água abaixo, não é uma tradicional rivalidade de família, um intercâmbio ou a maldição de se transformar em ogro que barra o matrimônio, mas o fato concreto de diferenças de classe. 

Na imagem, Anora, à direita, está sentada no colo de Ivan. Ela é uma mulher de pele clara, na faixa dos 25 anos, de cabelos longos, ondulados e escuros com algumas mechas de brilho rosa. Ivan está usando óculos escuros, com o rosto virado para a esquerda conversando com alguém. Ele é um homem branco, na faixa dos 20 anos, de cabelos lisos, curtos e escuros.
A personagem não gosta do seu nome, prefere ser chamada de Ani (Foto: Universal Pictures)

Neste segundo momento, o filme incorpora o espírito de Tangerine (2015), longa que Baker gravou com um Iphone. Nas ruas e estabelecimentos comerciais do cotidiano, o mundo urbano é set de filmagem para a explosiva perseguição por Nova York; Anora junto aos capangas da família de Ivan para encontrar o garoto. São muitos elementos em cena, pessoas falando por cima, gritos e violência, bem semelhante a história de Sin-Dee – e distante de um conto de fadas. Eliminando a decupagem estilizada, Sean Baker dá vida à realidade por meio de seu Cinema real, filmadora  na mão e proximidade dos personagens. Às vezes, a câmera invade a mesa de pausa para o lanche. 

O próprio gênero do filme muda, antes um melodrama, depois uma Comédia escrachada com tudo que SuperBad – É Hoje (2007) tem de mais absurdo e escandaloso. Assim, o filme desce do salto alto das produções de grande orçamento de Hollywood e abraça uma estilização e direção de Cinema independente. Nesta história de contradições, personagens diferentes e estilos opostos – um ‘filhinho de papai’ que casa-se com uma mulher que nunca viveu a ficção –, é interessantíssimo o texto, assinado por Baker, contar uma história clássica para um tempo moderno. 

Ivan é como Peter Pan, um garoto que se recusa a crescer, só quer saber de ‘farra’, videogame e não quer trabalhar. Enquanto Anora é Cinderela, mas ao invés de limpar uma casa, ela precisa vender seu corpo. O envolvimento com a história da gata borralheira é tamanha que até um item precioso – como o ‘sapatinho’ de cristal – é perdido, porém, quando devolvido, a mágica não é restaurada e o ‘felizes para sempre’ fica para a Disney

Os melhores filmes da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo possuem personagens humanizados, com histórias reais e, por vezes, trágicas. No Cinema contemporâneo, Sean Baker é um nome influente no cenário, seja em forma ou conteúdo. Assim, Anora é contagiagente, engraçado e até triste, sendo mais uma realidade excelente na prateleira dos novos contos de fadas. 

 

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