A verdade, como a luz, cega.
Albert Camus, A queda (1956)
Bruno Andrade
Ao parafrasear Luis Buñuel, a renomada crítica Pauline Kael faz uma reflexão interessante: “Um elaborado conjunto de teorias trata o Cinema como ‘a viagem noturna ao inconsciente’ […]. O Cinema parece ter sido inventado com a finalidade de expressar a vida do subconsciente”. As narrativas nunca se limitam apenas à superfície – mergulham nas entranhas do pensamento. Anatomia de uma Queda, longa que integra a seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, tem domínio dessa sensação, e trabalha em sintonia às verdades ocultas e dilemas da interpretação.
Em Anatomie d’une Chute (no título original em francês), cuja direção é assinada por Justine Triet, com roteiro original de Arthur Harari, Clémentine Schaeffer e da própria diretora, somos convidados a uma experiência cinematográfica que desafia as expectativas convencionais do gênero que se propôs a trabalhar. Logo no início, numa manhã de inverno nos Alpes franceses, Samuel é encontrado morto no chão em frente à sua casa, com um ferimento profundo na cabeça.
Durante suas duas horas e meia de duração, o drama evita o terreno seguro dos clichês sobre a vida, caminhos trilhados ou da relação entre o casamento e dois contadores de histórias (neste caso, uma escritora em alta e um escritor que não consegue escrever) – possibilidades quase irresistíveis nos dramas de tribunal e nas histórias de casamento. Ainda assim, Triet encontra uma forma mais cerebral e original de insistir nessa última ideia, buscando a realidade através das histórias de Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis), mas, principalmente, da relação complexa entre a representação da verdade e aquilo que realmente aconteceu.
Um salto temporal intrigante acontece na metade do longa, arremessando a história para um ano depois. A princípio, essa intervenção parece desconectada do clímax, deixando uma sensação estranha conforme as cenas avançam – nada muda, e o salto temporal parece completamente descartável. No entanto, uma análise mais aproximada pode indicar essa mudança – para além do avanço das investigações no tribunal – como uma espécie de ‘lupa’ para o desenvolvimento de Daniel (Milo Machado Graner), o filho de 11 anos do casal e parcialmente cego, no piano. Trata-se da primeira cena imediatamente depois da passagem: o menino frente às teclas, repetindo as melodias de cenas anteriores.
A busca pela verdade parece novamente uma metáfora poética possível para a condição de Daniel. Ele possui a capacidade de ouvir e falar, mas não pode enxergar. Em contraste, Snoop, o cão da família (interpretado pelo simpático border collie Messi, que ganhou o prêmio Palm Dog em Cannes), consegue ver, mas não pode falar. Sandra vê, ouve e fala, mas afirma não ter presenciado o momento da morte de Samuel, tornando seus sentidos inúteis. O mistério central permanece sem resposta: o pai caiu da janela, pulou intencionalmente ou foi empurrado? A intensidade com que Daniel se dedica ao piano, a ponto de transpirar intensamente tocando sempre a mesma melodia, revela seu desconforto diante dessa questão.
Sem a capacidade de ler partituras, ele se apoia no som e na experimentação, demonstrando que os ruídos podem revelar verdades profundas. Durante as investigações sobre a morte de Samuel, quando o primeiro juiz (Pierre-François Garel) realiza a reconstituição do ocorrido, Daniel – que sente todo o processo como um divórcio tardio dos pais – revela ter se enganado quanto ao local onde sentiu o couro preso à parede (uma maneira que seu pai desenvolveu de dar autonomia ao filho com deficiência visual, espalhando pedaços de couro por toda a região da casa para que pudesse se guiar com o cachorro).
Para a impaciência do juiz, Daniel não estava onde disse, dias antes, que estava – o tato, um de seus principais sentidos, foi incapaz de trazer a verdade. Essa mesma metáfora indica a importância que Anatomia de uma Queda dá a outros elementos cinematográficos: o som, a fotografia interessante de Simon Beaufils, o roteiro complexo e inteligente e as atuações brilhantes, que são coroadas numa direção precisa. Esses elementos, em conjunto, fizeram do longa o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e de Justine Triet apenas a terceira mulher a levar o prêmio, após ter sido indicada em 2019 por Sibyl, mas perder para Parasita, de Bong Joon-ho.
Na atuação, é Sandra Hüller que se destaca, dando a força emocional do filme – “Sandra Hüller”, guarde este nome. A substância dramática do longa parece ser encapsulada na sua atuação em harmonia com a fotografia de Beaufils, que acrescenta nuances de documentário por meio de um jogo de câmeras revelador. Hüller compreende a necessidade de manter a ambiguidade, particularmente em relação a sua personagem, acusada de matar o marido – o mesmo homem que, de maneira trágica e desintencional, causou a cegueira do filho. Essa ambiguidade paira sobre a narrativa, e ela e Triet trabalham em conjunto dentro desse limiar.
Anos atrás, a atriz surgiu como uma estrela em ascensão em Toni Erdmann (2016), drama de Maren Ade que, para muitos, deveria ter levado a Palma de Ouro quando concorreu. Hüller, agora, desempenha papéis de destaque em dois dos principais filmes do ano: o próprio Anatomia de uma Queda e a adaptação do romance de Martin Amis, Zona de Interesse, dirigida por Jonathan Glazer e que também integra a 47ª Mostra Internacional de São Paulo.
Um elemento intrigante no filme é a recorrência da versão instrumental de P.I.M.P., de 50 Cent, cuja letra é notória por sua profundidade misógina. Essa música se repete ao longo de Anatomia de uma Queda, tornando-se uma trilha sonora não oficial que, de maneira cômica e sinistra, parece projetada para perturbar Sandra. O som está presente desde a cena inicial, na qual acompanhamos a entrevista entre ela e Zoe (Camille Rutherford), uma estudante de pós-graduação interessada na sua escrita, trabalhos de tradução e literatura em geral. Essa entrevista, contudo, se converte em um encontro sedutor.
Como uma renomada autora alemã que, a exemplo de boa parte dos escritores contemporâneos, utiliza a autoficção para conceber seus trabalhos, Sandra faz carreira em Londres e se muda para uma casa nos Alpes franceses para realizar um desejo do marido, um homem francês de origem. Ela tem o alemão como língua materna, mas utiliza o inglês para se comunicar – embora às vezes, num esforço, fale o francês – e vive num país de língua francesa. Sandra não parece estar definitivamente em lugar algum.
Ela e Zoe, então, tomam taças de vinho e a conversa sorrateiramente muda de foco – não se trata mais dela, mas sim delas. P.I.M.P. começa a tocar do alto das escadas, e a entrevista precisa ser encerrada – nenhuma das duas consegue mais se ouvir, atrapalhadas pela melodia de uma canção que, na sua versão original, repete “she feed them foolish fantasies” (ela alimenta o sonho dos tolos). O marido sabia que Sandra estava flertando lá embaixo?
A confusão inicial, na mistura entre biografia e ficção, é o motivo que leva a estudante de pós-graduação a entrevistar Sandra inicialmente, a fim de recolher informações para a tese que vem escrevendo. “Nos faz querer descobrir qual é qual”, insiste. A protagonista, ao sorrir, revela que sua liberdade dependerá da forma como o júri, logo menos, analisará suas afirmações – sempre interpretativas, num jogo de verdade-mentira e dos limites da interpretação. Antes do julgamento, é isso que o advogado e melhor amigo, Vincent (Swann Arlaud), diz: não importa se ela matou Samuel ou não, “esse não é o ponto”.
Na metade do filme, o promotor (Antoine Reinartz) questiona se Zoe sabia da bissexualidade de Sandra, mesmo sem a necessidade de afirmar nada além do que vimos. A revelação – que mais parece uma constatação – traz outras informações: existia um acordo tácito entre Sandra e Samuel, ou pelo menos parecia existir, no qual se relacionar com outras pessoas não seria um problema – uma tentativa de aliviar as tensões conjugais após o acidente que acabou parcialmente com a visão do filho, quando ele tinha 4 anos. Mas fica evidente que esse acordo tácito tornou-se uma fonte de conflito para o marido.
Ao evocar diretamente Anatomia de um Crime (1959), de Otto Preminger, e A queda (1956), de Albert Camus, a obra de Triet parece dar ênfase à exploração de elementos do comportamento humano e da moral, utilizando a ‘queda’ como metáfora ou ponto de partida. Em Anatomia de uma Queda, não é apenas o corpo do marido que cai da janela: o casamento de Sandra e Samuel tomba de maneira constante, cujos motivos da queda são esmiuçados nas sessões do tribunal.
Em essência, Anatomia de uma Queda é um drama de tribunal, embora apresente uma abordagem fresca e original dentro desse sub-gênero. Sendo possível dividir o filme em partes iguais sob o idioma inglês e o francês, o núcleo da narrativa gira em torno das revelações feitas perante o júri, e os momentos de vulnerabilidade de Sandra são compartilhados com Vincent, seu melhor amigo, mas também seu advogado, que revela ter se apaixonado por ela no passado. Esses aspectos da vida pessoal da protagonista ganham destaque nos dilemas do julgamento, revelando que as expectativas sociais, personificadas pelo júri, têm mais influência em sua condenação e redenção do que os detalhes específicos que cercam a morte do marido.
Essa narrativa complexa e emocional nos lembra como a verdade, muitas vezes, é subjetiva e multifacetada, e que o Cinema, como expressão artística, tem o poder de revelar as profundezas do subconsciente humano. O filme se encerra com as situações aparentemente resolvidas, mas longe de serem definitivas. Sob um estado de incerteza, talvez o filho de Sandra, Daniel, saiba mais do que foi expressamente revelado. Não há forma mais clara de se alienar do que alimentar a sensação de que se sabe de tudo. Assim, a verdade permanece elusiva, e aceitar a versão apresentada parece ser a única opção.