Aviso: o texto contém spoiler e aborda temas sensíveis.
Davi Marcelgo e Guilherme Machado Leal
O Cinema de Walter Salles se concentra em temáticas semelhantes, principalmente em Terra Estrangeira (1995) e Central do Brasil (1998), histórias sobre memória, esquecimento e a relação de suas personagens com o Brasil. No primeiro, Fernanda Torres interpreta Alex e, no segundo, é a sua mãe, Fernanda Montenegro, quem dá vida à professora Dora. Em 2024, com Ainda Estou Aqui, adaptação de livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o diretor retoma a parceria com as atrizes para abordar um outro período da história: a Ditadura Militar brasileira. Ambientado no Rio de Janeiro da década de 1970, o longa-metragem acompanha a vida de Eunice Paiva (Fernanda Torres) e seus filhos após o desaparecimento de Rubens Paiva (Selton Mello), ex-deputado engajado na luta contra o regime ditatorial.
Entre tantos trunfos de Salles, o maior é universalizar os sentimentos de alguém vítima de um período específico da história brasileira. Embora o período seja importante e doloroso, é particular na vida de Eunice e de outras pessoas que sofrem com a ausência de respostas e a incerteza deixada pela ditadura. O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorena conseguem transmitir o acontecimento em uma experiência que perpassa a necessidade de ter vivido aquilo e transforma a tragédia em um sentimento coletivo. Até porque, como fazer com que ‘eu’ compadeça com a dor alheia? O retrato de Rubens Paiva, nos primeiros minutos do filme, aproxima e apresenta o espectador ao personagem; um pai amoroso, marido devoto e amigo querido. A presença de Selton Mello em tela é tão onipotente que, sem ele em cena, a ausência é avassaladora.
Elemento excelente, afinal, é a importância de um pai na família e o que seu desaparecimento causou em todos que moravam naquela casa. A encenação que configura o antes e depois do decesso de Rubens Paiva, personificada nas mudanças que ocorrem no lar, espaços e iluminação, também é um mérito imbatível para te fazer sentir. Os tons de amarelo são substituídos pelo azul ou pela sombra, enquanto as músicas agitadas do rock libertino britânico ou da bossa nova são abafadas pelo ensurdecedor silêncio.
A casa carioca se torna uma personagem modificada assim como os humanos dessa história, vazia e silenciosa, sem precisar, como um dia necessitou, que uma câmera tenha de correr para acompanhar a agitação das danças e das crianças. Se a vida dessa família possui um antes e depois extremamente delimitado, o filme também possui duas partes. A partir disso, o longa constrói uma aproximação forte, sobretudo porque todo mundo já perdeu alguém, parou de frequentar os mesmos lugares que ia na infância ou viu o familiar ficar irreconhecível. Ao compreender essa natureza humana, Walter Salles, a direção artística de Gabriel García e a Fotografia de Adrian Teijido transformam a história da família Paiva em uma experiência coletiva.
O primeiro ato do longa se preocupa em mostrar o dia a dia dos Paiva. O tradicional almoço de domingo, com a presença de amigos próximos e agregados do círculo social, contribui para caracterizar a família. Veroca (Valentina Herszage), filha mais velha de Eunice e Rubens, não vive longe de sua câmera. Com o objeto, os costumes daquela casa são eternizados em polaroids e ilustram o lar. A partir do sumiço do patriarca, a repressão, sutilmente representada por sons e frases ambíguas de que algo está acontecendo no país, ganha um tom de denúncia e se concentra no sentimento de revolta de uma mãe e filhos desamparados.
Na vida, fotografias servem para registrar momentos, sejam eles agradáveis ou tensos. A memória nem sempre é um atestado de que o momento recortado foi bom. Na verdade, ela relembra as sensações que foram experienciadas no dia em que tudo aconteceu. Paralelamente a isso, em Ainda Estou Aqui, as fotos marcam o estado de uma época definida pela censura. Um olhar mais à esquerda, um sorriso mais contido e expressões mais sisudas também funcionam como evidências do terror vivido pelos brasileiros nos 21 anos do regime.
As representações fotográficas, então, apontam o medo no olhar dos personagens. Mostrar os dentes, em 1970, não é simplesmente uma expressão facial de que está tudo bem. Pelo contrário, é o reconhecimento da dor de uma família que permaneceu sem respostas de seu ente querido após as táticas de tortura realizadas pelos militares. Apesar de tudo, nesse contexto, sorrir é um atestado da confirmação de que algo bruto, como a morte do ex-deputado, é melhor recebido do que uma falsa sensação de esperança.
Maneirismos, características e hábitos evidenciam a personalidade dos seres humanos. Ir à sorveteria regularmente, ouvir os discos de um artista da MPB, como Gal Costa, ou fazer suflê como prato principal são apenas alguns dos costumes do lar carioca. Por exemplo, Nalu Paiva (Bárbara Luz), a filha do meio, tem uma relação próxima com o pai. O terno, seu cigarro e a maneira de se portar atuam para a jovem como uma aproximação mínima do que, um dia, Rubens foi quando preenchia física e sentimentalmente o lar. Com a partida, aquilo que era cotidiano ganhou um novo significado: a percepção de que objetos materiais podem, de fato, ser extensões daqueles que amamos.
É através de objetos e apelidos carinhosos que o filme compõe a atmosfera de saudades; ao desaparecerem do cotidiano, convergem com o propósito de marcação das fases da casa e o sentimento de mudanças pungentes. O papel de Eunice como mulher dentro daquele núcleo e as novas posições que precisa assumir também é afetado nesta dinâmica: agora, ela quem está à frente dos negócios da casa e nem sempre consegue acessar o que é de direito, por exemplo, o dinheiro no banco. Para além de elementos em cena ou texto – como os militares enclausurados nas sombras –, a câmera incorpora a ausência do pai, como a cena em que senta na mesa, ocupando uma cadeira vazia.
Porém, embora pequenos, há momentos em que o filme perde a força, principalmente quando muda de década ou deseja denunciar a ditadura. Quando ocorre a passagem de tempo da década de 1970 para 1996 e, depois, 2014, o enredo dá saltos grandes e não permite que o espectador acompanhe a trajetória da família com a mesma aproximação e lentidão como grande parte do longa, deixando a sensação de ter algo faltando.
Quanto ao caráter de manifestação direta, o momento de Eunice falando com repórteres sobre a importância da memória e da resistência soa como um texto pronto para viralizar nas redes sociais e abandona o lado íntimo, destoando das duas horas anteriores. Inclusive, a advogada colando o atestado de óbito do marido em seu álbum de memórias é um elemento mais latente quando trata-se de denúncia, porque parte de um discurso pathos, mais eficaz e que mantém o tom estabelecido.
Resistir, lembrar, persistir são, para Ainda Estou Aqui, atos pautados no silêncio e emoção transmitidos por enquadramentos, cores e encenação, quase pouco por diálogos, em sinfonia de forma e conteúdo com sua protagonista, que não permite demonstrar os sentimentos, deixando até seus filhos de fora da situação familiar. Portanto, quando o longa decide ‘falar’, destoa.
Quando um filme brasileiro é aclamado, surge a tradicional pergunta ‘será que vai ser indicado ao Oscar?’. Com Ainda Estou Aqui, a conversa não seria diferente, ainda mais levando em conta o circuito internacional da produção. No Festival de Veneza, Murilo Hauser e Heitor Lorena levaram o prêmio de Melhor Roteiro. Após as primeiras exibições, Fernanda Torres foi elogiada pela imprensa estrangeira, como o Deadline e a Variety. Caso seja indicada à maior premiação do Cinema, a artista se juntará a sua mãe, Fernanda Montenegro, como as únicas brasileiras já cotadas para a estatueta de Melhor Atriz.
Embora premiações possam servir como um atestado de que uma obra é criticamente competente, o longa de Salles por si só já ganhou o mais importante: a adesão dos brasileiros. Salas lotadas, discussões nas redes sociais depois da experiência e a exaltação do nosso Cinema valem muito mais que uma possível – e merecida – nomeação. A conversa em volta de tudo que foi sentido e relembrado com essa história é, no fim das contas, o que amplia sua relevância. No entanto, há uma força motriz que sustenta os momentos de maior tensão e ela se chama Fernanda Torres. Os Normais (2001-2003) e Tapas e Beijos (2011-2015) mostram o traquejo da veterana com a Comédia, enquanto Terra Estrangeira (1995) exige um tom melodramático pela história contada.
Em ambos os gêneros, ela domina com maestria as competências necessárias para as personagens que interpreta. Com a adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva, a atriz carrega a dor de cinco filhos em um trabalho corporal. A forma como a matriarca precisa guiar os jovens, desamparados devido ao sumiço de Rubens, concentra todo o tom melancólico de Ainda Estou Aqui. O fato é que Eunice não está, mas precisa, realmente, segurar tudo dentro de si, por ela, pelos seus e, principalmente, pelo marido.
É ‘chavão’ que o Cinema é memória, registro e até objeto para denúncia. Mas não existe forma melhor de definir Ainda Estou Aqui. Contar a história dos Paiva nas telonas é reforçar o quão devastador aqueles 21 anos foram para os brasileiros. Dessa forma, Walter Salles novamente demonstra um domínio em impactar seu público de forma sútil, mas brutal, através de personagens que serão eternizados na Sétima Arte do nosso país.