Maria Carolina Gonzalez
Em setembro de 1969, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr encerravam juntos uma jornada que perdurou por sete anos intensos. Abbey Road – último trabalho que os Beatles fizeram, embora não seja o último a ser lançado – nasceu em meio ao caos, às desavenças e às rupturas que os quatro viviam até se reunirem novamente no lendário estúdio. Mesmo com as diferenças, o quarteto de Liverpool mostrou muito entusiasmo para assim completar, de forma brilhante, a longa e sinuosa viagem que transformou os Beatles… em Beatles.
Sete anos de carreira é praticamente nada para uma banda hoje em dia. Mas claro que se tratando de Beatles a história é diferente. Quando Please Please Me começou a ser gravado em 1962, eles ainda eram garotos excitados chegando na cidade grande para vender sua música e mostrar seu carisma. Já em 1969, nenhum dos integrantes tinha chegado aos 30 anos e já haviam experimentado de tudo, musical e pessoalmente. Todo o prestígio estava se ofuscando pelo peso da fama e da exploração por parte da indústria artística. Foi inevitável que cada um seguisse seu caminho.
O Fab Four virou uma bagunça. O próprio Lennon já conseguia ver o fim do grupo ainda em 1967, devido o colapso que a morte do empresário Brian Epstein trouxe. Essa ruptura, juntamente com as infelizes gravações do Let It Be (penúltimo álbum gravado, mas foi o último lançado), deixaram evidente que os quatro não existiam mais em forma de grupo. Porém, o próprio slogan dos estúdios Abbey Road diz que lá é o lugar “onde tudo acontece”. Deixar as desavenças de lado? Nem tanto. John, Paul, George e Ringo levaram o que cada um tinha de melhor em sua personalidade para editar e finalizar as 17 faixas que compõe o álbum.
Quatro pessoas atravessam juntas a faixa de pedestre
Mesmo com estilos fragmentados, os Beatles estavam em sintonia, principalmente Lennon, McCartney e Harrison – as três forças criativas do grupo. Os dois primeiros sempre foram considerados “mais beatles” do que os outros. John era a letra enquanto Paul era a melodia e a combinação entre eles (mesmo em constante desentendimento) criou faíscas que se transformaram em composições inesquecíveis. No Abbey Road, Lennon assinou 6 das 17 músicas, incluindo faixa que abre o disco, “Come Together”.
“Alguns sabichões disseram que cada estrofe se refere a um beatle. “Holy roller” [enrolador sagrado] era o espiritual George. “He got monkey finger, he shoot Coca-Cola” [Tem dedos manchados, se injeta Coca-Cola] era Ringo. “Got to be good looking cause he’s so hard to see” [Precisa ser bonito porque é duro de ver] era Paul.” – O jornalista Hunter Davis, em seu livro As letras dos Beatles.
Logo no início já dá pra ter noção das letras escassas, de poucos versos e muitas repetições. Sem metáforas, o que tinha que ser dito era dito, embora algumas partes nonsense chamem a atenção. “I Want You (She’s So Heavy)” é uma canção minimalista, com pouca coisa a declarar, totalmente dedicada à Yoko Ono. Apenas 12 palavras em um canto desesperado de John que se estende por 7 minutos e 44 segundos que encerra o lado A do disco.
Paul – otimista, alegre e perfeccionista – trouxe oito faixas, entre elas a controversa “Maxwell’s Silver Hammer” e “You Never Give Me Your Money” – um declarado hino contra os abusos da Apple Corps e a briga de empresários que acelerou o fim da banda. A partir desse momento, o lado B do Abbey Road segue para aquilo que foi originalmente chamado de “A Huge Medley” (Um Medley Enorme). Este nome não apareceu no resultado final, mas claramente nota-se o que ele significa. A sequência “Sun King” – “Mean Mr. Mustard” – “Polythene Pam” – “She Came in Through the Bathroom Window” é formada de maneira a formar um único conceito, formato que não se via desde o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
Não dá pra continuar falando de Abbey Road sem mencionar a grande surpresa que foi George Harrison como compositor – surpresa pelo menos para John e Paul que diversas vezes deixaram o quiet beatle na sombra. A segunda faixa do disco e primeiro lado A do guitarrista, “Something”, foi composta por George sozinho (como sempre) em um piano, ainda durante os trabalhos do Álbum branco. O engenheiro de som Geoff Emerick disse que a canção era algo que nunca tinha visto antes. A singela história de amor cheia de dúvidas e preocupações, contada em apenas cinco notas e guitarras harmônicas, se tornou a segunda música mais regravada do grupo, perdendo apenas para “Yesterday”.
Outra composição de Harrison, “Here Comes the Sun”, mostrava o quanto ele era complexo e foi o primeiro a perceber que ser um beatle era um absurdo. Após um longo período de burocracias na Apple Corps e imerso em uma filosofia de desapego ao mundo material, George, munido de um violão, aproveitou uma rara folga no jardim de Eric Clapton para criar uma melodia otimista para aliviar a tensão de ser um astro. Uma gravação revelada recentemente, feita após o fim da produção de Abbey Road, mostra que Paul McCartney não achava que George esteve à altura dele e de John como compositor até aquele momento. É engraçado pensar que atualmente Paul dedica boa parte de seus shows para homenagear o companheiro, morto em 2001, quase como um pedido de desculpas.
E como Ringo Starr fica nessa história? Ora, a personalidade do Ringo é ser o Ringo. E pra ele isso nunca foi um problema. Pelo menos uma música do Abbey Road leva seu nome na composição: “Octopus’s Garden”. A voz marcante, carregada com o sotaque de Liverpool, mais uma vez canta sobre uma vida feliz e segura em alto mar.
And in the end…
Mais um medley é colocado no álbum, mas dessa vez em tom de despedida. A primeira parte, “Golden Slumbers”, baseada em uma canção de ninar, faz jus a nostalgia. Em seguida, “Carry That Weight” faz mais uma provocação à Apple e às brigas entre os empresários, repetindo entre os cinco versos a melodia de “You Never Give Me Your Money”.
Por fim (quase que literalmente), “The End” sintetiza a ideia do álbum ao trazer os quatro juntos fazendo um solo. Ringo bate nos bumbos enfurecido dando abertura ao duelo divertido de guitarras entre John, Paul e George. A nota final do piano se junta a voz de Paul que canta “And in the end, the love you take is equal to the love you make” (E no fim, o amor que você recebe é igual ao amor que gera).
Eles poderiam se despedir falando de amor, mas após um longo silêncio, “Her Majesty” surge por descuido em apenas 23 segundos. Mas considerando o calor do momento e o fato de que “The End” é descrita como última faixa oficialmente, consideramos esta como o epitáfio dos Beatles. Nas gravações reveladas recentemente, o grupo ainda planejava gravar mais um álbum após o Abbey Road. E por incrível que pareça, John Lennon – diversas vezes apontado como o responsável pelo fim da banda – é quem estimula os colegas a trazerem singles para um novo trabalho. Sabemos que nada disso foi pra frente. Seis dias depois, John anuncia oficialmente sua saída da banda.
Amor é velho, amor é novo
Para aqueles que se dedicam a estudar suas obras, Abbey Road pode não ser o melhor ou mais revolucionário dos Beatles – totalmente compreensível. Como foi dito anteriormente, o quarteto já havia experimentado, criado e incrementado em sete anos (que pareciam setenta) tudo que a música poderia oferecer e claro que finalizaram sua carreira de forma polida. Fim dos Beatles? Hoje sabemos que é impossível falar disso.
Este texto poderia facilmente se estender por mais quatro páginas de elogios aos Beatles e mostrando porque eles são eternos. Também poderia pontuar como o Abbey Road é uma despedida inovadora e única, mas qualquer enaltecimento ficaria repetitivo. Os fatos não deixam mentir, basta saber que milhares de pessoas se arriscam em uma das ruas mais movimentadas de Londres para imitar os passos que o quarteto fez em uma sessão de fotos que não durou nem dez minutos.
Abbey Road não foi o fim. Foi o começo de um legado que já conhecemos muito bem. Um obra prima única que, meio século depois, não foi ofuscada por nenhuma outra banda nem pelos próprios Beatles. E esse é o melhor jeito do quarteto de Liverpool se despedir sem dizer adeus.