Nathan Nunes
Em Agente Duplo (2020), a diretora Maite Alberdi deixou clara a sua metodologia: partir de um objeto de estudo do cotidiano para refletir sobre temas mais profundos. Indicado ao Oscar de Melhor Documentário naquele ano, em que perdeu para o inferior Professor Polvo, o longa acompanhava Sérgio, um senhor viúvo que era incumbido da missão de se infiltrar em um lar de idosos para investigar uma denúncia de maus tratos. No desenrolar dos acontecimentos, observamos ele se afeiçoar progressivamente aos hóspedes do local, ao compartilhar com eles seus sentimentos de solidão.
Agora, Alberdi retorna ao Oscar com A Memória Infinita, também indicado na categoria de Melhor Documentário. O método continua o mesmo, mas o objeto de estudo é bem menos pitoresco que o anterior. Trata-se do casal chileno Augusto Góngora e Paulina Urrutia. Ele foi jornalista, cineasta e apresentador da Televisão Nacional do Chile, a única rede televisiva estatal do país. Ela é uma atriz de renome, cuja influência a levou ao cargo de ministra da cultura da ex-presidente Michelle Bachelet, durante o seu primeiro mandato, entre 2006 e 2010. Ainda que tivessem enorme reconhecimento popular, ambos enfrentaram, em sua vida privada, um triste dilema: o mal de Alzheimer, com o qual Augusto foi diagnosticado em 2014.
Para Alberdi, a escolha de filmar a rotina de um casal em uma situação tão delicada torna-se uma oportunidade para refletir sobre a importância da memória, em um contexto de amor e política. Por isso, a diretora não a desperdiça, mantendo-se longe da espetacularização e fixando seu olhar em uma posição observadora e passiva, mas não necessariamente distante. Através do close, sua câmera valoriza a intimidade entre os dois, como em pequenos gestos de cuidado. Um dos exemplos mais marcantes é ver Paulina dando banho no marido e acariciando seu rosto, uma imagem belíssima que estampa um dos principais pôsteres de divulgação do documentário.
Na mesma linha, temos as conversas particulares entre eles, que emocionam desde os minutos iniciais, quando vemos Augusto acordar levemente esquecido de sua identidade e Paulina explicando-a para ele, com paciência e empatia. Curiosamente, é o marido quem recorda o passado para a esposa mais à frente na rodagem, quando relembra o dia em que se conheceram, de forma feliz, mas também melancólica. Nessa situação, fica evidente a necessidade de se verbalizar todos os sentimentos, dúvidas, questionamentos e, claro, memórias, enquanto ainda há tempo.
Essa necessidade, por sua vez, reverbera nas imagens de arquivo que Alberdi aproveita em sua narrativa, construída em conjunto com a montagem de Carolina Siraqyan. Dos registros caseiros em VHS das viagens e festas do casal aos trechos extraídos de entrevistas e reportagens de Augusto, o longa articula uma visão da memória como um elemento fundamental para todas as pessoas e, por consequência, também para o Chile, pois, nas palavras do jornalista, “sem memória, não há identidade”.
A frase pertence ao livro Chile: La Memoria Prohibida (1989), escrito pelo próprio, em colaboração com outros autores, e que é lido por Paulina para ele em um ponto-chave da rodagem. Tendo vivido os anos de repressão e ditadura militar de Augusto Pinochet e, nesse meio tempo, reunido relatos para a obra, é notável que Augusto guarda cicatrizes desse período, assim como seu país. Em uma das cenas mais tocantes do documentário, vemos ele chorar ao se lembrar dos assassinatos da época, em especial o do sociólogo José Manuel Parada, cuja cabeça degolada foi exposta publicamente para aterrorizar a população.
Em geral, a memória aqui acaba exercendo diferentes funções. Na política, impede um país de se esquecer dos horrores que viveu na mão do totalitarismo. No amor, mantêm acesa a chama de relacionamentos como o de Augusto e Paulina, com anos de cumplicidade e afeto. Em um campo da subjetividade, como o da autoafirmação, nos lembra das nossas identidades. E, no contexto específico do lançamento do documentário, serviu infelizmente como uma despedida, pois Augusto faleceu no ano passado, aos 71 anos de idade.
Na forma de A Memória Infinita, os últimos registros de sua vida tornaram-se, portanto, um ato de memória por si só. É provável que Maite Alberdi não via tamanha ironia do destino, desde que filmou um homem se afeiçoando a um lugar que se infiltrou para desmascarar, como em seu trabalho anterior. No entanto, é certo de que ela estava segura em capturar uma história de lembranças, seja dos esforços de uma esposa em fazer o marido lembrar-se de quem é, ou de um jornalista disposto a lembrar seu país de fazer o mesmo.