Leonardo Teixeira
A relação entre homens e “monstros” parece sempre ter fascinado Guillermo del Toro. O diretor fez fama mundial em 2006 com o horror fantástico O Labirinto do Fauno, mas a verdade é que a contraposição entre humanidade e a falta dela é tema onipresente em sua obra. Celebrado por tudo e todos, A Forma da Água (The Shape of Water) é mais uma adição ao clube.
Elisa Esposito (Sally Hawkins) vive mergulhada em sua rotina. Muda devido a traumas que marcaram sua infância, ela divide o tempo entre seu emprego de limpeza em um laboratório secreto do governo e seu gosto por filmes de Hollywood. Um dia a dia sem surpresas. A década de 60 foi marcada pela Guerra Fria e, consequentemente, pela Corrida Espacial (disputa entre Estados Unidos e União Soviética pela supremacia tecnológica da época) e é aqui que o cotidiano de nossa heroína é alterado.
Uma criatura aquática (Doug Jones), capturada na Amazônia, é levada ao laboratório para ser estudada, pois suas características biológicas podem oferecer pistas para avanços na Corrida. No meio tempo, a curiosidade de Elisa a coloca frente a frente com o peixão e cria-se um laço entre os dois. A harmonia é quebrada pelos esforços do assustador coronel Richard Strickland (Michael Shannon), que, seguindo ordens de seus superiores, ordena que o homem-anfíbio seja morto e dissecado.
Superficialmente, A Forma da Água parece ter pouco de novo a oferecer. O filme mais formulaico de Del Toro segue o script do que se propõe a ser (um conto de fadas/fábula) e o faz com sucesso. No entanto, é latente a aura de estranhamento e subversão que o longa exala. O mexicano, mais uma vez, estampa sua marca d’água no roteiro e direção e confecciona uma obra que só poderia ser sua.
O pulo do gato é a naturalidade com que os elementos fantásticos e de horror são injetados em cena: em meio a um design de produção que encanta pelo pouco compromisso com a realidade — as ambientações soam como ilustrações de um livro infanto-juvenil —, o texto não cria alarde com a aparência da criatura ou com o desenvolvimento de sua relação com Elisa. O espectador é imediatamente obrigado a entrar na brincadeira do diretor, bem no estilo dos filmes B.
A influência do clássico O Monstro da Lagoa Negra (1954), um dos preferidos de Guillermo Del Toro, é bem clara. Mas chama a atenção também a homenagem a momentos mais flamboyants do cinema, como os musicais de Carmen Miranda na trilha sonora ou a recriação da primeira cena de dança entre um casal inter-racial da história do cinema.
Originalmente, a coreografia foi protagonizada por Shirley Tample e Bill Robinson, obviamente sem qualquer sugestão romântica entre os personagens, no longa Um Mascote do Regimento (1935). Mas o roteiro de Del Toro e Vanessa Taylor (conhecida por seu trabalho na série pouco assistida Game of Thrones) usa dessa referência para fazer um baita de um comentário social.
Interessante notar como esse peso político funciona melhor nas entrelinhas da trama (quando a intenção de debate é mais literal acaba soando plástica). O personagem de Michael Shannon é exemplo máximo disso. Cego pelo próprio patriotismo, é racista, misógino e violento, mimetizando bem o arquétipo do homem branco e agressivo que é facilmente pisado pelos poderes acima dele, mas acredita piamente que tudo pode (“na força de Deus e na glória da pica”, como canta Linn da Quebrada). O resultado é um vilão sangrento, corrompido pelo medo do fracasso e, consequentemente, medonho. Palmas para Shannon.
Sally Hawkins também destrói tudo com sua Elisa. A limitação da personagem à língua de sinais e expressões faciais é uma oportunidade para a britânica se destacar no melhor momento de sua carreira. Complexa, a personalidade da mocinha é exalada por elementos como a paleta de cores e a trilha sonora, mas nada tira de Hawkins o mérito pelas diversas nuances e emoções extremas e opostas que ela imprime apenas em olhares ou gestos sutis.
A protagonista é também a força motriz da carga sexual do longa, que corrompe as expectativas para a princesa de um conto de fadas. Com tantas camadas, a inspiração da atriz parece ter sido o trabalho de Liv Ullmann em Persona (1966), obra-prima de Ingmar Bergman.
Acaba sobrando bem pouco espaço para as tramas menores. Por mais eficientes que seja em cada uma de suas empreitadas, Octavia Spencer não tem material suficiente para retratar algo que vá além do alívio cômico. Para Richard Jenkins o problema é o mesmo, resultando em um personagem que luta para não ser unilateral. Ambos soam quase que como meros escudeiros de Elisa.
Uma história que brinque com o lúdico e o tempere com horror e estranhamento é uma faceta que já esperamos de Guillermo Del Toro. A Forma da Água não é seu momento mais inspirado, mas certamente ofereceu a dosagem ideal de originalidade para cativar o público americano e as premiações mais badaladas. Um pouco afastado do incômodo maravilhoso causada pelo fauno em 2006, aqui o diretor salta aos olhos com sua beleza poética e complexidade visual.
Mais uma vez rompendo com as nossas expectativas do fantasioso, a fórmula da fábula infantil ganha carga política e peso sexual. No cerne da obra, o que é oferecido pelo filme é uma bola que Del Toro vem cantando há tempos: o que corrompe uma criatura é a humanidade e as relações entre indivíduos humanos. No fim das contas, os reais monstros somos nós.