1899 tenta, mas está longe de superar Dark

Cena da série 1899. Nela, há um homem branco com cabelos pretos vestindo sobretudo preto olhando para a esquerda, lado em que está na foto. No centro, há uma mulher branca com cabelos ruivos e que veste um vestido na cor marsala. À direita, está um homem branco, com cabelo castanho liso e barba. Ele veste um colete preto sobre uma camisa de manga cinza. O fundo da cena é desfocado.
Em 1899, Baran bo Odar e Jantje Friese repetem fórmula na tentativa de se consagrarem novamente com uma das séries mais assistidas da gigante do streaming (Foto: Netflix)

Felipe Nunes

Drama, artefatos misteriosos que moldam a realidade, o espaço e o tempo, ficção científica e um casal alemão que revolucionou a história da Netflix ao lançar uma das séries de língua não inglesa mais consumidas na plataforma. Essa é a receita de Dark e quase foi a do novo lançamento do streaming, 1899. As comparações são sempre injustas, mas o tempo de produção e investimento superior para a segunda obra de Baran bo Odar e Jantje Friese fez o seriado prometer mais do que podia cumprir. A associação é inevitável. 

Nenhuma trama parte do mesmo lugar e traça um processo de criação idêntico para que possa ser confrontada com outra de forma justa. Contudo, após a história complexa e instigante de Dark envolver os espectadores ao longo de três sequências, é impossível não se perguntar o que aconteceu para que tudo fosse ladeira abaixo em uma nova série. A produção era tida pelos fãs e críticos especializados como certa para uma renovação, mas o resultado surpreendeu e o cancelamento foi anunciado logo no primeiro ano. Os criadores lamentaram, pois os planos eram para não apenas uma, mas sim duas outras temporadas, como aconteceu com sua primogênita.

1899 é iniciada com Emily Beecham dando vida à complexa e misteriosa médica Maura Franklin. A protagonista é um convite para desconfianças. Às vezes, parece ser heroína, outras, vilã, e essa mescla de padrões é um dos pontos altos do enredo. Em um navio, a doutora vive uma confusão mental que extrapola a ficção e deixa quem assiste tão confuso quanto ela. Na história, Maura está em busca de seu irmão, desaparecido em uma embarcação que nunca chegou ao destino final em Nova Iorque. Além dela, há diversos imigrantes com distintos segredos sombrios, porém com um objetivo em comum: ter uma vida melhor na alta elite da sociedade nova-iorquina.

1899 é o primeiro produto audiovisual da Netflix filmado completamente em estúdio virtual (Foto: Netflix)

Semelhante aos longas Fratura e As Linhas Tortas de Deus, a série brinca com o que é realidade, ilusão e simulação na vida de seus personagens. Ao decorrer dos primeiros episódios, é difícil saber o gancho central de tudo. São sonhos? Algo sobrenatural? Ciência? Impossível responder, mas deliciosamente possível teorizar. É esse o grande feito de 1899: deixar os espectadores curiosos, pensativos e até mesmo confusos. As dúvidas não são por conta de falhas no roteiro de Baran bo Odar e Jantje Friese, é tudo premeditado. Como se fosse uma cebola, a cada capítulo mais uma camada é explicada. Com isso, os arcos se encaixam e ganham forças.

Se por um lado a narrativa instiga e prende o telespectador nos desdobramentos da história, por outro os personagens não se aproximam do público. Há um vasto núcleo de intérpretes com um tempo de tela muito mal administrado. Com exceção da história principal, todos os outros desenvolvimentos são jogados para o esquecimento. Contar com um elenco tão diversificado foi um trunfo e é uma pena que isso não tenha sido bem trabalhado. Os episódios são longos e poderiam deixar de explicar o óbvio e dirigir a atenção à trajetória dos papéis centrais. Embora tenha tentado trazer dramas e sofrimentos particulares, isso foi feito de forma superficial e 1899 falhou em encantar. Por exemplo, o sentimento de torcer pela destemida Maura, pela sensível Tove (Clara Rosager) ou sentir raiva do pai da protagonista, Henry Singleton (Anton Lesser), tido como vilão, é praticamente inexistente. Esses anseios não são explorados.

O elenco é quem eleva a obra. Além de Clara Rosager, Mathilde Ollivier (Clémence), Yann Gael (Jérome), Isabella Wei (Ling Yi), Fflyn Edwards (Elliot) e Miguel Bernardeau (Ángel) são excelentes e fazem jus aos eventos que vivenciam, ainda que tenham pouquíssimos momentos de profundidade com os personagens que interpretam. A carga dramática de Tove escancara esse descaso e, mesmo sendo uma das reviravoltas mais emocionantes, tem pouco destaque, tal qual acontece com os demais arcos que não envolvam diretamente a dupla Maura e Eyk Larsen. Os dois quase formam um casal e a construção não é ruim, muito pelo contrário. Contudo, é insuficiente para manter a atenção que a narrativa precisava despertar em quem assiste.

Cena da série 1899. Nela, na esquerda, há uma jovem branca com cabelos pretos lisos, ela veste um Kimono em tons de vermelho e laranja. Ao seu lado, na direita, há um rapaz branco, com cabelos loiros, ele veste um uniforme bege, que está manchado com carvão. O lábio do rapaz está sangrando. O fundo da foto é desfocado e apresenta o salão de um navio.
Com pluralidade idiomática, 1899 destaca várias línguas e apresenta personagens de diversas nacionalidades, como japoneses, alemães, franceses e noruegueses (Foto: Netflix)

Por ser a irmã mais nova de Dark, o lançamento já era esperado pelos fãs do gênero e dos criadores. Uma polêmica, no entanto, causou uma verdadeira reviravolta na recepção dos espectadores, principalmente os brasileiros. Logo após ter sido lançada, a série foi alvo de uma acusação de plágio por uma quadrinista brasileira, Mary Cagnin. De acordo com ela, elementos narrativos de uma de suas obras, a HQ Black Silence, estavam sendo copiados. Réplicas e tréplicas foram feitas negando as denúncias. Contudo, muitos consumidores não aceitaram as declarações e reforçaram o apoio à artista, deixando de ver e recomendar o conteúdo audiovisual.

Sobre o cenário, os efeitos visuais e a trilha sonora, é válido enfatizar que estes atuam como personagens à parte e abrilhantam com maestria todo o conjunto narrativo, um reflexo do orçamento da produção. Esses elementos são tão bem encaixados que parecem ser a alma da obra e, na verdade, de fato são. Cada aspecto conversa entre si, tem sua razão de ser e seu motivo para estar ali, naquele molde e naquele momento. Nada sobra ou parece faltar, o que é uma dificuldade e tanto na indústria cinematográfica.

Cena da série 1899. Nela, há uma mulher branca, com cabelos loiros, que é focalizada na imagem. Ela está suada e faz uma expressão de espanto.
Clara Rosager brilhou dando vida à complexa Tove e merecia mais destaque e profundidade em 1899 (Foto:Netflix)

O grande plot twist é a revelação do que de fato faz os navios não chegarem ao seu destino final, a grande dúvida que prende os espectadores ao decorrer dos oito episódios. E o plural de navios abarca bem mais do que Kerberos e Prometheus, já que é contado que diversas embarcações já se perderam nessa expedição marítima e nunca chegaram a Nova Iorque. Na conclusão e explicação da motivação central da série, os elementos são conectados de uma forma fluída, sem desconexões, e o roteiro vence o maior desafio de enredos que se pautam na ficção científica: os temidos furos, que, além de prejudicarem a compreensão do seriado, mostram descuido com o texto. 

A filosofia ainda ganha espaço no universo ficcional. Um dos assuntos que percorrem as explicações das fatídicas situações é o Mito da Caverna, do livro A República, escrito pelo célebre filósofo Platão. Na narrativa, o mito é abordado em diversos momentos e cria uma rede de apoio com as experiências antropológicas, psicológicas, emocionais e sensoriais de todos os que participam das simulações dentro dos navios. A princípio, a mistura das ciências exatas com a área filosófica parece não combinar, mas, ao decorrer da série, elas formam um par excêntrico e acoplado.

Apesar da área humanística adentrar a abordagem científico-filosófica, o destaque continua sendo a física quântica. O texto se debruçou sobre as teorias e antecipou problemas de compreensão que poderiam ter acontecido com lacunas, que estiveram presentes em Dark. Outro ponto importante foi a contagem de todos os fatos. Isso porque, ainda que esperassem uma renovação, grande parte dos arcos foi concluída com os desfechos da primeira temporada. E é por isso, que os diretores mostraram que aprenderam a lição quando o assunto é entregar um script conectado, cuidadoso e, sobretudo, bem escrito.

Maura é a conexão de todos os arcos e tramas construídos ao longo da obra (Foto: Netflix)

Ao terminar a série, a sensação é de que 1899 tentou, mas não conseguiu alcançar os feitos da antecessora, mesmo com tudo conspirando para isso: o maior tempo de produção, o orçamento e a própria experiência do casal que criou a série. A profundidade dos arcos foi um desequilíbrio gigantesco, tanto que, quando o anúncio do cancelamento foi feito, não houveram tantas mobilizações – algo que aconteceu com outras produções da Netflix, como Anne with an E e O Clube da Meia-noite. O público não se apegou aos dramas alternativos dos personagens e os atores tinham total competência para isso.

Permeada por polêmicas envolvendo plágio e com ressalvas sobre superficialidades já supracitadas, a obra tem um roteiro intrigante, misterioso e atrativo. A linearidade temporal é bem trabalhada, usando flashbacks ao seu favor e revelando uma nova faceta a cada capítulo. 1899 é, definitivamente, bem construída com a proposta que almeja desenvolver ao entrelaçar temas filosóficos, científicos e tecnológicos. Talvez seu maior erro tenha sido nascer depois de Dark e não antes.

 

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