10 anos da 1ª temporada de Demolidor: o herói entre a fé e a justiça cega

A imagem tem tons azulados. O Demolidor está vestindo uma touca preta que cobre toda a parte do nariz para cima de seu rosto. Ele está caído e com o rosto de frente para o chão. De sua boca sai sangue que está caindo numa poça de água. A câmera está próxima, captando apenas do ombro para cima do personagem.
Sete anos depois do cancelamento de Daredevil, a série volta para uma quarta temporada em 2025 (Foto: Marvel)

Guilherme Moraes

A combinação entre a Marvel e a Netflix surgiu no início da onda de streamings e no meio da Saga do Infinito, como forma de expansão do UCM e da popularização do serviço. A ideia funcionou muito bem para ambos os lados, pois conseguiram produzir séries de qualidade, que funcionaram dentro do Universo Marvel e ajudaram a atrair pessoas para a plataforma. Posteriormente, as empresas foram para caminhos opostos, se tornando rivais no mercado e começando a produzir em escala, mas com uma qualidade bem inferior. Demolidor, foi pioneiro, recebendo um trato mais carinhoso com a imagem e dando para o público um protagonista com dilemas mais complexos e bem explorados do que as produções seguintes, servindo como um pilar das duas marcas.

Na contramão dos filmes de herói megalomaníacos, sobre espionagem e guerras intergalácticas, a Marvel e a Netflix decidiram apostar em uma história mais intimista, com dramas mais humanos e um cenário urbano. Nesse sentido, a escolha pelo demônio de Hell’s Kitchen não poderia ser mais certeira. A ideia era que o show se mantivesse dentro do Universo Cinematográfico Marvel, sem interferir nos longas, e foi assim até cancelarem em 2018, para focarem em obras que fizessem parte do UCM, como WandaVision (2021) e Falcão e o Soldado Invernal (2021). Todavia, dez anos após a estreia, o Demolidor irá retornar para uma quarta temporada sob o nome Daredevil: Born Again e comandado pela Disney+.

A imagem tem tons amarelos. O demolidor está ao centro, de pé em posição de luta. Ele veste seu uniforme amador, com roupas escuras e velhas. Aos seus pés está um homem, aparentemente lesionado, vestindo uma blusa de couro. O cenário parece ser o de um beco. Ao fundo um táxi com a porta do motorista aberta e o farol ligado, ilumina o ambiente.
A nova temporada estreia em Março (Foto: Marvel)

A primeira season da série é uma grande introdução ao personagem. Diferente dos grandes herois como o Batman, Superman e o Homem Aranha, que já estão com suas origens bem definidas no imaginário popular, o Demolidor ainda precisava ser mais lapidado frente ao público. Nesse sentido, o Showrunner Steven S. DeKnight optou por introduzir através de flashbacks, mostrando para os espectadores o seu passado quando necessário. Nos primeiros episódios, No Ringue e Homem Cortado, as recordações de Matt Murdock (Charlie Cox) estabelecem quem ele é. Precisamos saber sobre como ele ficou cego, a relação com o pai e como morreu, além do que o motiva. No entanto, é ao longo dos capítulos e conforme a necessidade, que outras coisas são estabelecidas, como o episódio Stick, que nos revela a forma que o protagonista aprendeu a lutar.

Algo que chamou muita a atenção são as cenas de luta. Os movimentos são violentos, crus e, ao mesmo tempo, plásticos. Já os golpes são cadenciados, o sangue que é expelido dá a sensação maior de brutalidade, porém, nada é exagerado, dando um aspecto mais realista. O trabalho sonoro é essencial, valorizando os sons de socos, objetos e partes do corpo se quebrando e a utilização dos cenários é sempre bem pensada, tanto para captar o personagem, quanto para o próprio ter diferentes ações dependendo do lugar em que está. Dessa forma, o realismo é pensado para além da sua temática, como também pela sua forma.

Sobre esse contexto de violência, dois personagens se destacam: O Demolidor e Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio). Ambos se assemelham pela sua raiva e o jeito que a externalizam por meio da brutalidade com o intuito de alçar os seus objetivos. Não à toa, estes são os mesmos: salvar a cidade que eles amam do caos. Essa dualidade tornou a obra mais rica, e colocou o herói em crise. Contudo, enquanto o vilão assume a postura maquiavélica, Matt Murdock se questiona sobre a possibilidade de fazer justiça por meio da lei, sendo advogado, ao mesmo tempo em que se sente tentado, como seu alter ego, a tomar o caminho mais fácil, para pôr fim à tirania do Rei do Crime.

A imagem coloca duas pessoas em cada extremo, separados por uma mesa. Na esquerda está Karen, vestida com um vestido verde e uma blusa vinho. Ela está em uma posição desconfortável e com uma expressão de raiva. Na direita está Wesley, ele está vestido e se comporta de maneira elegante, com um terno e as pernas cruzadas. Sua postura e expressão demonstra calma e confiança.
Daredevil foi a primeira série do UCM (Foto: Marvel)

O episódio O Caminho dos Justos se destacou entre os demais por conseguir observar essas duas figuras de maneira mais introspectiva e traçar os caminhos para o final. Retirando os protagonistas do jogo, o capítulo coloca um ponto final – ou quase isso – na relação Matt e Claire. Assim, o isolamento da figura do alter ego do Demolidor faz com que enfrente seus dilemas morais e religiosos. Ele observa dentro de si o próprio demônio, que arranha a sua pele querendo sair e, a partir disso, duvida de sua fé. Todavia, é nesse ponto que ele entende qual figura será. Do outro lado, Fisk se vê cada vez mais fragilizado, ainda mais com o encerramento em que seu maior aliado é assassinado, o tornando cada vez mais perigoso.

A figura de Melvin (Matt Gerald), que aparece pela primeira vez no episódio citado, é fundamental na compreensão das diferenças entre os dois rivais. É a partir dele que Matt compreende quem deve ser. Apesar de ser muito violento, ele olha para Melvin e percebe que a sua função está além de dar medo aos criminosos, mas, principalmente, dar esperança às pessoas. Por outro lado, O Rei do Crime expressa sua raiva por meio da barbárie e, dessa forma, constrói o seu império.

O cenário é o interior de uma igreja. Mais próximo a câmera está Matt de costas, sentado em uma das cadeiras. Ele veste uma roupa preta e está com a cabeça em direção ao padre. Ele parece desolado. Ao centro está o padre, com sua batina preta, olhando para Matt de maneira séria e ao mesmo tempo preocupada e carinhosa.
“Pessoas correm para a Igreja quando sentem o Diabo por perto” (Foto: Marvel)

Em uma conversa com Claire (Rosario Dawson), a personagem diz que o Demolidor não é apenas alguém que salva a cidade, mas que foi criado por ela. Por meio da marginalidade surgiu um herói ‘podre’, com falhas e fraquezas muito evidentes. O vilão segue essa mesma linha, originado da violência doméstica. Aliás, é interessante observar como as mazelas urbanas fizeram Jack Murdock (John Patrick Hayden) e Bill Fisk (Domenick Lombardozzi) – pais de Matt e Wilson, respectivamente – transformarem seus filhos. Ambos eram frustrados pela vida que levavam, contudo, enquanto Jack era um lutador que colocava tudo pra fora no ringue, Bill descontava suas angústias na sua mulher, filho e bebidas. Tudo isso passou para os protagonistas: Matt virou um lutador que nunca desiste e Wilson repete os mesmos padrões de comportamento do pai, desde as frustrações transformadas em violência até a sua tentativa de buscar poder, vendo a si mesmo como o salvador da cidade.

A figura do Demolidor por si só foi elaborada de maneira muito rica desde as HQs. A ambiguidade entre Matt, advogado cego, e Daredevil, o justiceiro, constrói uma representação da justiça. O significado da justiça cega está ligado a um processo igualitário, sem julgamento prévio e imparcial. Contudo, o universo desse personagem vê a venda como impunidade; a lei não alcança os grandes criminosos. Nesse contexto o alter-ego de Murdock concebe sua própria justiça, indo atrás deles e aplicando a punição – no filme de 2003 ele chegou até a matar alguns.

O aniversário de dez anos da primeira temporada caiu, coincidentemente, próximo ao lançamento de Jurado N°2, de Clint Eastwood, que lida com questões similares sobre justiça. A série explora as contradições de um homem que trabalha a favor do sistema judiciário e, ao mesmo tempo, não confia nele. “Eu ouvi uma menininha chorando na cama… seu pai gostava de ir ao seu quarto tarde da noite enquanto sua esposa dormia. A lei não poderia ajudar aquela menina, mas eu podia”; Matt se questiona durante toda a temporada sobre matar ou não o vilão, o que envolve, até mesmo, a sua fé. Contudo, apesar de parecer que ele não acreditava em seu lado de advogado, na verdade, ele só buscava um equilíbrio entre trazer a justiça para os desafortunados e respeitar a lei e a punição dos homens.

Ao fundo está um prédio. No centro está Matt, agora devidamente uniformizado como Demolidor. Ele está com uma roupa que aparenta ter uma textura mais firme, com cores que se alternam entre o vermelho e preto. A máscara é vermelha e tem dois pequenos chifres. A câmera está posicionada de baixo para cima, tornando essa figura imponente.
“Não busco perdão pelo que fiz. Peço perdão pelo que vou fazer” (Foto: Marvel)

A obra tangencia o Universo Marvel e, dessa forma, precisa estar em concordância, mantendo um aspecto realista. Todavia, a abordagem não poderia ser mais diferente. Enquanto o UCM lida com heróis distantes e um visual mais cinzento que é vazio de sentido, Daredevil teve uma imagem granulada, ‘suja’, trabalhada com a iluminação e enquadramentos de forma mais artesanal, dando textura e dramaticidade, além de ser um salvador mais próximo do povo. A série mostra muito a relação dos civis com a cidade e o crime, tornando o papel do Demolidor mais concreto.

Dez anos após a 1º temporada, tudo o que estava planejado mudou. Netflix e Marvel romperam sua parceria, assim, a série foi cancelada em 2018, junto com outras quatro: Jessica Jones, Luke Cage, Punho de Ferro  e Os Defensores. O futuro não foi bondoso com as produções do UCM, em especial após o Vingadores: Ultimato (2019). A empresa aumentou o número de projetos por ano, passando a dar mais valor a quantidade do que a qualidade (algo que aconteceu com a Netflix também), o que faz com que as obras pareçam cada vez mais feias e vazias, além de submeter seus funcionários a longas jornadas de trabalho exploratórias. As produções televisivas que antes rodeavam o Universo Cinematográfico Marvel, agora, são definitivamente parte dele, desde a construção estética, até a necessidade de influência. Desta forma, os seriados passaram a ter menos liberdade com seus personagens e histórias.

Com a quarta temporada chegando, é esperado que o Disney+ abrace os dilemas morais e que não deixe Daredevil: Born Again se construa a partir de um medo abstrato. A fim de se preparar para a estreia, vale a pena rever as outras três seasons, para relembrar e curtir uma grande série de um dos personagens mais interessantes da empresa de HQs.  Esperamos que, em seu retorno, ela mantenha a qualidade, afinal, ainda há muito mais a se contar sobre o demônio de Hell’s Kitchen.

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