Gabriel Jaquer
Quando assistimos a um filme na infância, não dá para perceber toda a complexidade presente na obra, e é sempre uma surpresa agradável rever os queridinhos do passado sob um olhar mais maduro e perceber que ainda são relevantes para nossas vidas (como em Shrek, onde as piadas de insinuações adultas só são percebidas depois que assistimos com mais idade, e pelos pais – ou não – que assistiram na época). Vida de Inseto, a segunda animação da Pixar (lançada 3 anos depois de Toy Story) que completa agora seus 20 anos, aposta nessas entrelinhas e consegue agradar todas as idades.
A história apresenta, além de tudo que cativa as crianças, pontos de vista sobre a sociedade que são válidos até hoje. Pode parecer forçado querer tirar visões mais profundas sobre um filme para o público infantil, mas basta revê-lo para perceber que toda sua temática é voltada à genialidade de Flik (a formiga protagonista), que parece ser o único inseto da história a conseguir pensar muito além da caixa, e a como o formigueiro rejeita suas ideias por estarem acostumados à tradição – mesmo que isso implique em sofrer os abusos dos temidos gafanhotos.
Toda essa característica do formigueiro de não conseguir encaixar aqueles que têm criatividade para fazer as coisas de forma diferente pode ser muito bem resumida na primeira cena do filme, quando a folha cai na trilha de formigas e elas ficam completamente perdidas, pois não conseguem sequer considerar dar a volta na folha. É o filme apresentando a mentalidade conservadora tão vista nos dias de hoje.
Só depois disso e da apresentação da família real das formigas que Flik é apresentado, já com uma de suas invenções. É interessante que, diferente de alguns clichês, a invenção funciona bem e realmente cumpriria seu objetivo, que seria otimizar o tempo da colheita com uma máquina de pegar grãos; porém, o que atrapalha Flik na legitimação de seus feitos é a falta de cuidado no manejo (ele quase mata a princesa duas vezes), e o resto das formigas julga a qualidade dessas criações se baseando apenas no fato de ele ser muito desastrado. De novo, o filme dá um exemplo mais óbvio para ter a certeza de estar passando a mensagem do conservadorismo do formigueiro, na cena de rejeição do invento.
Como Flik não tem destaque social positivo na sociedade em que está inserido, não acontecem diálogos nos quais ele pode discutir e argmentar com os membros do conselho, demonstrando as diferenças entre a mente criativa e as mentes fechadas. Contudo, na cena em que ele conversa com Dot, filha mais nova da rainha e única formiga que o apoia desde o começo, podemos ver essa diferença quando a princesa não consegue fingir que uma pedra é uma semente, apenas hipoteticamente.
Apesar da falta de cuidado desvalorizar as invenções, é isso que abre caminho para que elas sejam aceitas, ao final do filme. O real problema do formigueiro é não aceitar novidades e inovações, e os descuidos do protagonista servem apenas de desculpa para as críticas; assim, ele não teria espaço para desenvolver suas ideias mesmo que fosse cuidadoso e não provocasse desastres o tempo todo. Por isso, suas imprudências acabam sendo úteis, já que a falha principal (quando Flik sem querer joga toda a comida da colheita no lago) abre caminho para que toda a história aconteça, com todos os problemas que vão aparecendo e que, no fim, dão credibilidade à personagem.
Enfim, toda essa crítica à falta de espaço para criação chega ao fim quando os gafanhotos são derrotados e tudo fica em paz novamente. A parte boa é que agora, além da liberdade, as formigas desfrutam também da invenção da colhedora de grãos que havia sido rejeitada no começo – inclusive criando elas mesmas, aparentemente sem a ajuda de Flik, “fogos de artifício” com os grãos lançados das máquinas. Isso demonstra como na verdade existiam mais formigas criativas (no final algumas até se juntam à trupe do circo), apenas não havia espaço para que elas desfrutassem de sua imaginação.
De volta aos problemas do formigueiro, deve-se dar um destaque não menos importante para a opressão dos gafanhotos. Hopper, o líder da gangue, é propriamente um ditador; ele sabe do poder das formigas e sabe que elas poderiam se livrar deles se quisessem, então se utiliza do medo e da força para fazer com que elas não percebam que são fortes, sempre agindo como se elas fossem extremamente inferiores e seu único propósito fosse servir os gafanhotos. Quando Flik propõe encontrar insetos maiores para lutar, todo o conselho de formigas considera uma loucura sequer cogitar entrar em conflito com os gafanhotos, pois todas elas têm essa noção de que realmente são inferiores. São como crianças que, mesmo depois de crescidas, ainda têm medo dos pais (deixando aqui bem separado medo de respeito) e não conseguem se impor. Esse estigma é quebrado apenas no final, quando o protagonista está apanhando a faz um discurso contra a tirania de Hopper, na frente de todo o formigueiro, e elas finalmente percebem que são fortes. Mais fortes que os gafanhotos.
Além da lógica do Flik como o indivíduo progressista numa sociedade travada nos costumes, também pode-se notar a estrutura de Jornada do Herói em que a história é contada. A Jornada do Herói é um conceito criado por Joseph Campbell, em que ele separa histórias e principalmente mitos antigos numa estrutura de 12 etapas, considerando isso uma base em que se desenvolvem as mais diferentes histórias. Depois da criação do conceito, muitas obras foram criadas utilizando essa estrutura no desenvolvimento: só na Disney, pode-se perceber a influência dessa teoria em filmes que vão de A Pequena Sereia até Mulan. Matrix e a trilogia do Batman de Nolan são outros exemplos que se encaixam no conceito.
A escolha de basear uma história na Jornada do Herói não é necessariamente pela facilidade de se ter algo pré-direcionado, pois pode servir para que a obra fique realmente com uma atmosfera de mito, algo que remeta às histórias épicas e traga essa sensação, que pode ser exatamente a intenção.
Competindo com Star Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma, Vida de Inseto ganhou um Grammy de melhor trilha sonora em filme, televisão e outras mídias, e foi indicado à melhor música original por “The Time of Your Life”. Talvez aqueles que assistiram quando crianças sejam suspeitos para dar opinião, mas a trilha toda instrumental realmente se encaixa muito bem nas cenas, trazendo graça, seriedade e grandiosidade nos momentos certos.
A animação sem dúvida merece ser assistido novamente por aqueles que só viram na infância, e também é uma boa experiência para quem nunca viu. Uma história agradável que traz desde momentos em que é difícil segurar ao menos um sorriso, até momentos em que a tensão deixa o espectador realmente aflito. Um filme inspirador e acessível a vários públicos.