n.v.z.
Considerando o aspecto politizado que cada vez mais toma conta das discussões sobre arte, não é de se espantar que Três Anúncios para um Crime (Three Billboards Over Ebbing, Missouri) seja pauta quente nas conversas cinéfilas de 2018. O filme foi indicado em sete categorias do Oscar e retrata a saga de Mildred Hayes (vivida pela ótima Frances McDormand), uma mãe que resolve questionar a incompetência da polícia local (em especial, do xerife Bill Willoughby) por meio de três outdoors – colocados em uma estrada pouco movimentada do município de Ebbing.
Curioso observar o quão enfáticas são as reações adversas ao longa-metragem dirigido por Martin McDonagh. A última empreitada de Darren Aronofksy, o péssimo mãe!, ficou marcada pela histeria dividida: obra-prima corajosa para uns, pastelão descartável para outros. A carga política de Três Anúncios, porém, engrossa a discussão. Uma simples passada pelas resenhas no Letterboxd revela pessoas acusando o filme de propaganda policial fascista e lacre empoderador. A crítica especializada também está bastante dividida: Pablo Villaça (Cinema em Cena) e o jornal The Guardian elogiaram, Richard Brody (The New Yorker) e André Barcinski (UOL) não pouparam farpas.
Definir Três Anúncios para um Crime como obra que discute temas polêmicos é tentador. Todavia, opino que ele funciona em moldes parecidos aos de Aquarius, no qual Kléber Mendonça Filho preferiu pincelar vários assuntos tabu a fornecer teses sociais profundas. A diferença vital é que, diferente do “petralha” brasileiro, Martin McDonagh recusa posicionamentos bem delineados. Sua missão é claramente apontar a humanidade (e a falta dela), seja à esquerda ou à direita, sem apelar para maniqueísmos.
Além de realçar características nocivas, o diretor faz questão de retratar que estas se deram por processos estruturais – tanto a protagonista quanto o violento policial Jason Dixon (excelente performance de Sam Rockwell) são resultados de lares disfuncionais. Por outro lado, também oferece doses de empatia na história. O tom sóbrio dos diálogos é preciso, e transmite a intimidade de habitantes de uma cidade pacata ao mesmo passo em que resguarda porções de desconfiança.
Os personagens são sustentados mais por grandes atuações (com destaque justo aos atores supracitados) do que por bom desenvolvimento roteirístico. A premissa aqui é escancarar que o sistema dificulta mudanças sociais imediatas e observar que, nesse cenário, os cidadãos medianos não possuem muitas alternativas senão cumprir com as normas ou convergir em ações agressivas.
A brutalidade é banalizada, dado que a ideia de fazer justiça com as próprias mãos é defendida por pessoas de diferentes quadrantes políticos. Frases racistas, misóginas e homofóbicas surgem com naturalidade assustadora, e lembram que os primeiros sinais de naturalização de violência são linguísticos. O roteiro utiliza de rimas e prioriza eventos, e o fato de entrecortar narrativas acaba sendo fator positivo; o valor da trajetória do outro só nos interessa quando podemos usá-lo em nosso favor. A tão falada empatia também é instrumento de manipulação.
Os três outdoors se transformam em personagens, e a relevância que carregam na trama é cômica: objetos inanimados geram maior comoção do que acontecimentos práticos envolvendo pessoas – são tempos onde o jeito em que a mensagem é transmitida é mais relevante do que ela em si, afinal. O desfecho do filme dispensa uma solução ética para os conflitos, e é um reflexo mais do que pontual do quão inflamados de raiva todos estamos. Tal pessimismo não impede que McDonagh também seja utópico, dado que este parece crer em uma justiça via karma.
Por mais que a utilização de humor negro reforce as denúncias de hipocrisia do cotidiano e seja um diferencial, a direção pesada (e por vezes didática demais) impede que o longa-metragem seja tão anárquico e provocador como poderia. O famigerado simbolismo na aparição de um veado, por exemplo, soa como mero exercício estético desnecessário e não diz nada de novo no enredo, enquanto há personagens secundárias caricaturais com única função: alívio cômico. As constantes comparações com a obra dos irmãos Coen são compreensíveis, e uma revisão atenta sugere que os responsáveis por The Big Lebowski refinariam a trama.
A música de Carter Burwell também não ajuda, com inserções de tons melodramáticos em cenas que poderiam respirar sozinhas. A indicação em Melhor Trilha Sonora Original é injusta, especialmente no lugar de Jon Brion e seus belos arranjos para Lady Bird.
Estranho imaginar que Três Anúncios para um Crime seja o maior concorrente para fisgar a principal estatueta do Oscar do grande favorito da noite, A Forma da Água (com treze indicações no total). Não é um filme que promove respostas ou finaliza com redenções. Tampouco é perfeito, sequer o melhor entre os nove indicados. Para o bem e para o mal, porém, é uma obra necessária e com a cara da década: não vê heróis, vilões ou culpados – apenas pessoas, sujeitas à mudanças interiores e peças de um jogo social perverso, repleto de becos sem saída.
Por essa forte temporalidade, a chance de envelhecer mal é grande. Para agora, no entanto, só as recepções que procuram cooptar o longa-metragem para suas agendas políticas já serve como indicativo da relevância de Três Anúncios para um Crime. Talvez ele fosse ainda mais eficaz se existisse um quarto anúncio, estampado com “pare de orbitar dentro de sua própria bolha achando que ela é o mundo”.