The Smiths: a luz que nunca se foi

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Da direita para a esquerda: Andy Rourke, Morrissey, Johnny Marr e Mike Joyce

Nilo Vieira

Em 1984, quando questionado sobre o porquê da escolha do nome The Smiths, o vocalista Morrissey respondeu que queria o nome mais ordinário possível para sua banda. Mal sabia ele que, em pouco tempo, o quarteto provaria estar muito acima de um grupo comum: com seus dois primeiros álbuns de estúdio (e a compilação Hatful Of Hollow, também essencial), os Smiths se destacaram por sua combinação de sonoridade orgânica – em contraponto ao uso exagerado de sintetizadores, comum naquela década – com o lirismo poético de Morrissey, que abordava tanto temas cotidianos como tabus com uma dosagem certeira de dramaticidade, referências literárias e ainda assim permanecia acessível ao grande público.

No entanto, seria em 1986 que a banda definitivamente deixaria seu nome cravado na história. O terceiro álbum, cujo nome original era “Margaret on a Guillotine” (um aceno simpático ao governo da primeira-ministra Margaret Thatcher), veio no embalo da aclamação crítica e de público e trouxe uma banda ainda mais afiada, em todos os aspectos. Com a fortíssima faixa-título, The Queen Is Dead abre com força total: a bateria simples e marcante de Mike Joyce (potencializada pela gravação reverberada) abre o caminho para a guitarra frenética de Johnny Marr, acompanhado dos grooves sempre certeiros do baixo de Andy Rourke. A voz de Morrissey entra entoando um verso categórico: “Adeus aos pântanos tristes dessa terra”.

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A crítica aos costumes britânicos ultrapassados é parte central do álbum. “Frankly, Mr. Shankly” ataca diretamente a indústria fonográfica e seus contratos traiçoeiros, “Cemetry Gates” é a resposta de Morrissey aos críticos que questionavam seu uso de citações de literatura, “Vicar in a Tutu” debate sobre a relação da sociedade com a igreja católica. Mas o que realmente surpreende em The Queen is Dead, mesmo após três décadas de seu lançamento, é o quanto o álbum se mostra universal e atual, mesmo com o contexto historiográfico passado.

A canção mais celebrada do disco, “There Is A Light That Never Goes Out”, é um bom exemplo. O uso de acordes básicos na guitarra contrasta de maneira sublime com os arranjos de cordas elegantes, e aí percebe-se o grande trunfo dos Smiths: conseguir extrair sofisticação mesmo nas coisas mais simples. A letra da música não fica atrás, e ainda permanece como uma das mais belas odes à paixão já escritas na música pop; quantos versos expressam tantas emoções de forma tão poética como “E se um caminhão de dez toneladas nos matar/ Morrer ao seu lado é uma maneira divina de morrer”?

Já “The Boy with the Thorn in his Side” serve para ilustrar a sabedoria de Morrissey ao se pronunciar claramente e, mesmo assim, manter as coisas abertas. Os versos tanto podem ser interpretados como um desabafo do vocalista perante a insensibilidade artística de sua gravadora como servem para expressar a angústia de um indivíduo tímido ou não aceito pelas pessoas ao seu redor – não à toa, essa canção é uma das favoritas de uma grande parcela de fãs dos The Smiths, o público homossexual. O mesmo vale para a finalíssima “Some Girls Are Bigger Than Others”, ambígua desde seu nome. Interessante notar que o instrumental dessas duas músicas pode soar até mesmo antagônico em relação às letras (vide a guitarra serelepe da primeira e o clima gélido da segunda), mantendo até um certo equilíbrio emocional nelas.

Apesar das canções supracitadas serem excelentes e merecerem todos os elogios possíveis, acredito que o ápice de The Queen is Dead se encontra em uma faixa menos comentada. “I Know It’s Over” é dotada de um carga emocional densa, com tons de melancolia cortantes: “Veja, o mar quer me levar, a faca quer me cortar/ você acha que pode me ajudar?”, canta o desolado Morrissey, acompanhado de um fundo instrumental que remete à uma valsa solitária. Desilusão amorosa, carência afetiva, apego emocional, depressão – todos esses sentimentos estão ali representados, e a canção ainda termina dando uma faísca de esperança ao ouvinte deprimido, bem como uma lição exemplar de empatia: “É muito fácil rir, é muito fácil odiar/ Requer coragem para ser gentil e amável”.

Como nem tudo são flores, no mesmo ano de 1986 o mundo veria o último show do The Smiths. No ano seguinte, o grupo ainda colocou no mercado Strangeways, Here We Come – tido por Morrissey e Marr como seu melhor trabalho -, mas não teve jeito: a banda estava encerrada, tanto por divergências musicais como pessoais. Os quatro integrantes permaneceram fazendo música, mas nada equivalente ao nível dos trabalhos smitheanos e ainda hoje, apesar de todas as brigas entre os membros, fãs alimentam a esperança de uma reunião do conjunto – possibilidade negada por todos da banda, em toda e qualquer ocasião possível.

Toda essa devoção só confirma a influência gigante que o The Smiths exerce na cultura pop. Do inconfundível topete e óculos com armações grossas de Morrissey aos traços sonoros que o grupo estabeleceu como padrões, são incontáveis os indivíduos – artistas ou não – influenciados pelo grupo. As linhas melódicas da guitarra de Johnny Marr (curioso notar que a maior influência do músico é James Williamson, pioneiro do punk ao lado dos Stooges), alternando entre dedilhados velozes e trocas de acorde simples, bem como o estilo vocal variado e emocional de Morrissey foram praticamente uma bíblia para o Legião Urbana, por exemplo. Já os escoceses do Belle And Sebastian se inspiraram nos Smiths na estética das capas dos álbuns – embora, diferente dos encartes criados por Morrissey, as pessoas retratadas não sejam figuras culturais célebres ou parte de algum filme obscuro. A banda de indie rock Modest Mouse, cujo estilo lírico repleto de metáforas deve muito à Morrissey, conseguiu uma façanha ao ter o próprio Marr em uma de suas formações.

Mas não convém estender a lista de aprendizes, tampouco cair em comparações. Para o bem e para o mal, nada foi semelhante à perfeição de The Queen is Dead (há quem cite “Never Had No One Ever” como uma faixa menor perante o conjunto, mas não é verdade); em apenas quatro anos em atividade, o The Smiths construiu uma reputação invejável, além de uma discografia impecável – mas a luz que nunca se foi permanece ali, com a rainha morta.

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