Caroline Campos
A morte caminha lado a lado com a vida desde que o mundo é mundo. É a única e mais misteriosa certeza da existência humana. Se há morte, há luto – quanto mais amado o falecido, mais dolorosa sua partida. No entanto, o luto se torna um grande banquete na nova série da HBO, The Outsider, sendo saboreado em cada momento de fúria exorbitante ou tristeza contida em seus dez episódios. Baseada na obra homônima de 2018 do mestre Stephen King, a série rodeia o sentimento de perda e suas consequências, impulsionada pelo caráter sobrenatural já conhecido das obras do Rei do Terror.
Começando como uma série policial, acompanhamos o detetive Ralph Anderson, interpretado de maneira hostil, mas tocante por Ben Mendelsohn, na busca pelo assassino do pequeno Frankie Peterson, que foi encontrado sodomizado e dilacerado no meio da floresta. Surge então o treinador de beisebol infantil Terry Maitland, vivido por Jason Bateman, como o principal suspeito. Como não levar em consideração testemunhas oculares, digitais na cena do crime e vídeos de Terry cheio de sangue? O detetive com certeza levou. No entanto, quando Terry apresenta um álibi legítimo e autêntico, a narrativa começa a se desenrolar. Afinal, uma pessoa não pode existir em duas realidades ao mesmo tempo, certo? É o que pensamos.
Jason Bateman foi o único indicado de The Outsider ao Emmy 2020, por seu papel como Terry Maitland, para Melhor Ator Convidado em Série de Drama pelo episódio Fish in a Barrel. A estrela de Ozark dirigiu os dois primeiros episódios da série, além de ter sido produtor executivo. Com uma participação pequena, Bateman nos presenteia com um Terry assombrado e confuso pelo crime que não cometeu e destruiu sua reputação, além de perseguir sua esposa e duas filhas. Toda a narrativa gira em torno da culpa que seus carrascos possuem, e a força de Terry paira até o último capítulo. Os aplausos são mais que merecidos.
Ralph, seu principal inquisidor, é consumido pelo luto da morte de seu filho e torturado pela culpa de seus próprios erros, inclusive os com o treinador. A atuação de Mendelsohn consegue ficar ainda melhor quando posto em cena com a carga dramática de Mare Winningham, que vive sua esposa Jeannie, e também tenta conciliar a vida antes e depois da morte de seu tão amado Derek. O equilíbrio e respeito mútuo do casal são demonstrados ao longo da temporada em cada interação entre Winningham e Mendelsohn, como um casal atormentado, porém unido ao enfrentar os resquícios da morte.
Enquanto isso, a viúva de Terry, Glory Maitland (Julianne Nicholson), vive uma batalha jurídica ao lado do advogado da família, Howard Salomon, na busca pela exoneração do seu marido. Leal até o fim, Glory é uma muralha de força contra a cidade que, enquanto antes a acolhia e adorava, agora hostiliza, maltrata e ameaça a mulher. Ninguém quer se envolver com a “Noiva de Frankenstein”. Foi a partir de sua dedicação e do conhecimento de Salomon, vivido por Bill Camp, que chegamos a ela: Holly Gibney. Sendo esse o ponto exato da virada de chave, a série passa finalmente a rondar seu aspecto paranormal.
De longe, Holly Gibney, a detetive particular que passa a conduzir a investigação, é o ponto do alto da série. Bem, claro que não seria diferente – sua intérprete é ninguém menos que Cynthia Erivo, ganhadora de um Emmy, um Grammy e um Tony pelo musical A Cor Púrpura e indicada ao Oscar desse ano por Harriet (2019). O Emmy 2020 não a reconheceu pela investigadora já carimbada dos livros de Stephen King, mas, Cynthia, à beira de se tornar uma EGOT, com certeza merece todos os créditos, e a premiação fica pequena ao seu lado.
Caracterizando outsider como um indivíduo que não pertence a determinado grupo, Holly é uma outsider desde que se entende por gente. A menina foi estudada e testada a vida toda por pessoas tentando entender o que ela era, como ela conseguia ser tão diferente. Então, para a investigadora, não foi difícil lidar com a ideia de que o que quer que tivesse matado Frankie, não pertencia a esse mundo. “Um outsider reconhece outro”, diz Gibney majestosamente em uma das cenas. Partindo de sua crença, conhecemos Ele. Não precisando de nada mais vilanesco do que um devorador de criancinhas, El Cuco é o grande rival dos personagens atormentados da adaptação de Richard Price.
Uma criatura sem rosto e cruel em busca da própria sobrevivência. É isso que sabemos, e isso que precisamos saber. Sua mitologia não é expandida nem explorada, e, mesmo assim, a simples sugestão da sua presença é aterrorizante. Como um rei antigo, se apodera de “escravos” para fazer o trabalho sujo enquanto se transforma na próxima vítima. O escolhido da vez foi Jack Hoskins, outro detetive envolvido no caso do menino Peterson. Hoskins é, no mínimo, digno de pena. Interpretado caoticamente por Marc Menchaca, o alcoólatra detetive foi um prato cheio para o Cuco: tomado pela dor, revoltado com o mundo ao seu redor, frustrado com a profissão.
Alimentado não só por sangue e carne, mas também por dor e pesar, o vilão usa e abusa de Jack, atiçando a raiva e a pena do espectador enquanto o personagem tenta se desvencilhar do controlador de mentes. Não há espaço para esperança quando se lida com um parasita dentro da sua cabeça. E, mesmo assim, Menchaca conseguiu dar um pouco de carisma para o problemático Jack, ao mesmo tempo que o vemos sucumbir como um inseto agonizando. The Outsider não é muito otimista com seus personagens, já que todos eles são guiados por algum trauma que afeta sua trajetória ao enfrentar o bicho-papão.
Com uma estética escura e lúgubre, a atmosfera das conversas entre os envolvidos na investigação fica completamente afundada no medo e na melancolia, mesmo as mais satisfatórias e interessantes entre o cético Ralph e a cheia de crenças Holly. Como uma clássica série policial, a narrativa se consome lentamente, com episódios inteiros de descobertas de conexões e dando pequenas pistas para as futuras reviravoltas sobrenaturais, que enriquecem ainda mais o arco de cada um.
Entretanto, nem só de boas narrativas vive a série. Holly engata um romance de forma rápida com o ex-detetive Andy Katcavage (Derek Cecil), e apesar de conquistar um pouco de carinho por parte do público, tudo fica desconexo demais para torcermos pelo casal. Assim como Glory, que antes era uma força da natureza, se reduz a pequenas participações no final. Além disso, a grande cena do confronto com o monstro incriminador de inocentes foi, pelo menos, decepcionante. Com um rápido diálogo sem muita relevância, as coisas se resolvem em um grande ato anticlimático. Talvez, depois de tanta ameaça velada, desejávamos um pouco mais de rancor da parte dos mocinhos.
Por fim, The Outsider merecia um pouco mais de atenção dos votantes do Emmy. Ignorar as interpretações de Ben Mendelsohn e Cynthia Erivo foram grandes injustiças, mas pelo menos a série marcará presença nessa edição do prêmio. Depois da cena pós-créditos de seu décimo capítulo, a segunda temporada tem uma boa chance de se desenrolar, já que não tivemos o suficiente de Holly Gibney e dos sobreviventes de tal empreitada inexplicável. Se veremos El Cuco ou não, fica o mistério. E de mistérios, o nosso mundo está cheio.