PCC: Poder Secreto apresenta a irmandade envolvida entre os integrantes do Primeiro Comando da Capital

A imagem foca num grupo de 9 integrantes, com camisas e shorts lisos em tons claros, em cima de um telhado, levantando uma bandeira com as iniciais da facção Primeiro Comando da Capital (PCC). Ao lado inferior esquerdo há o logo da série documental escrito “PCC Poder Secreto”.
“Cadeia um cômodo do inferno, seja no outono no inverno”: PCC: Poder Secreto desdobra a história do Primeiro Comando da Capital em narrativas antes ocultadas (Foto: Max)

Marcela Lavorato e Rebecca Ramos

Em 1997, ao lançar o álbum Sobrevivendo no Inferno, os Racionais MC’s propuseram, pela primeira vez na grande mídia, uma reflexão acerca das dificuldades enfrentadas pelas pessoas na periferia, além de questionar o que leva certos indivíduos neste contexto ao dilacerante sistema carcerário. Embora seja incerto o número de participantes de facções dentro de presídios, certamente é algo a ser discutido. O Primeiro Comando da Capital, popularmente conhecido como PCC, tem uma presença enorme dentro e fora das prisões, mas continua-se a ignorar este fato, uma vez que é de extrema delicadeza debater sobre como são tratados indivíduos periféricos num contexto prisional e seus efeitos na sociedade civil.

A cadeia é um moedor de ser humano”. A frase dita pelo ex-agente penitenciário Diorgeres Victorio é o ponto de partida que a direção de PCC: Poder Secreto  – exibida pela Max, antiga HBO Max –  evidencia durante os quatro capítulos da obra. Entre Carandiru, Pedro Juan Caballero, Taubaté e Presidente Venceslau, os presídios são idênticos – não há nenhuma atividade de ressocialização; há somente o trancafiamento. E é a partir daí que começamos a entender o surgimento da facção.

A imagem foca na parte da entrada da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde há um portão marrom com detalhes em prata no centro da imagem. Acima do portão, tem os dizeres sinalizando o presídio. Ao lado do portão, há duas árvores, uma para direita e outra para a esquerda, na qual há algumas pessoas sentadas em volta.
O PCC foi criado depois de uma partida de futebol dentro do presídio (Foto: André Nieto)

De que forma pode-se ressocializar grupos que nunca de fato foram inseridos numa sociedade por si só? Existe quase um misticismo acerca do motivo pelo qual as pessoas cometem crimes, ignorando completamente a individualidade, subjetividade e história de cada um que adentra este mundo. Somos seres grupais e necessitamos de validação externa, seja isso algo bom ou ruim. Espelhamo-nos na realidade mais próxima a nós mesmos. Precisamos ter um modelo de comportamento a ser seguido, que nos dê esperança de algo no fim do dia.

A produção, baseada no livro Irmãos: Uma história do PCC de Gabriel Feltran, desenvolveu os capítulos a partir de fatos e não de achismos. A obra demonstra que o sistema prisional brasileiro é o motor das facções, que surgem de dentro para fora e como diz o autor, o PCC e a polícia vivem um ciclo de “ação e reação”. No final, essas reações sempre recaem sobre as regiões periféricas. 

Capa do livro Irmãos: Uma história do PCC, escrito por Gabriel Feltran, e publicado pela editora Companhia das Letras. Num fundo preto, as frases “Irmãos: Uma história do PCC” são dispostas como se estivessem escritas num papel amassado.
Numa nova interpretação acerca de facções paulistas em comparação a de outros estados e países, a obra se faz de suma relevância no contexto nacional (Foto: Companhia das Letras)

Ao tentarmos encontrar um sentido e significado para a própria existência, além da questão do iminente sentimento de vínculo com algo que necessitamos, entende-se porque diversas pessoas penetram a vida do crime e a sua dificuldade de ver outras possibilidades. Seja na tentativa de obtenção de direitos básicos supostamente garantidos por lei ou na idealização de uma vida longe da própria realidade, fazer parte de instituições de acolhimento, chegando até mesmo no absurdismo de uma facção criminosa, não aparenta ser algo tão incoerente assim. É sobre pertencer e somente pertencer. 

De Sapopemba a Ermelino Matarazzo, são mostradas imagens e depoimentos impactantes. O relato da mãe e educadora Miriam Duarte é dilacerante e mostra a realidade de muitas famílias brasileiras. Dois de seus filhos foram assassinados e seu único filho vivo enfrenta as consequências das violências sofridas no presídio. O desenvolvimento da obra fortalece ainda mais o que o documentário quer apresentar: relatos pessoais sem relativização do tema.

Na imagem há os dizeres “paz, justiça e liberdade” escritos em branco, um embaixo do outro, e no chão. Do lado da palavra “paz” há uma bandeira do Brasil. Embaixo dos dizeres há algumas pessoas.
O PCC criou o seu próprio Estatuto e tem como lema “Paz, Justiça, Liberdade, Igualdade e União acima de tudo ao Comando” (Foto: Eduardo Knapp)

O documentário, finalista do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2023 na categoria de Melhor Série Documental Nacional, tem a trilha sonora como ponto alto. Nas passagens dos blocos, há a presença de inúmeras músicas com temáticas que envolvem o assunto e, seja de Racionais MC’s a Detentos do Rap, as composições – organizadas pela produtora LOUD+ – acompanham a trama construída de uma maneira poderosa, sensibilizando o espectador.

Seja um irmão do PCC, ex-integrante, agente penitenciário, promotor ou uma mãe que perdeu seu filho, os depoimentos presentes trazem um aspecto crucial: o de querer construir o enredo e mostrar como o poder da facção foi constituído e entrelaçado para nunca se quebrar. A obra traz esse quesito específico de escutar diversas vozes e, com o acréscimo de imagens de arquivos – seja por manchetes de jornais, rebeliões, intercepções telefônicas ou fala de políticos –, constrói muito bem a cronologia do Primeiro Comando da Capital nesses 30 anos –  de lutas contra a opressão penitenciária a um dos maiores grupos de tráfico internacional. 

Um prédio amarelado e antigo com muitas janelas e roupas penduradas de forma desorganizada. Presos demonstram luto com cartazes após o Massacre.
O massacre do Carandiru teve 111 mortos, todos detentos (Foto: Itamar Miranda)

Uma vez que se compreende a importância de ser reconhecido enquanto pessoa, especialmente em um contexto violento como pode ser o da periferia, finalmente abre-se um diálogo acerca do porquê é preciso representar, dar voz e espaço para outras narrativas num contexto geral, por mais dolorosas que sejam. De que forma acolhe-se alguém que nunca é visto, especialmente num âmbito maior do que a subjetividade individual? Constantemente esquece-se do potencial que cada indivíduo marginalizado possui, indo além do quesito trabalhista. 

Profissões como as de assistente social, psicólogo e sociólogo, ainda que cada vez mais sucateadas, tentam constantemente construir um mundo mais igualitário para pessoas que são tão apagadas e que merecem ser levadas a sério. Acolhimento é algo coletivo e, de fato, profissionais como estes acabam por diminuir a incidência de vidas perdidas para instituições como estas.

Com vista aérea, é possível ver o Complexo Penitenciário do Carandiru sendo demolido e subindo uma fumaça avermelhada pelo entorno da região.
Carandiru foi demolido parcialmente em 2002 (Foto: João Wainer)

Como sugestão, Justiça (2004) e Juízo (2007) – da diretora Maria Augusta Ramos – são produções documentais dos anos 2000 que dialogam de uma maneira narrativa muito parecida com PCC: Poder Secreto. Colocando sobre a mesa assuntos em que todos palpitam, mas ninguém toma iniciativa, entendemos que o sistema prisional brasileiro não vai mudar. Movido por racismo, ideologias punitivistas e outros problemas sistêmicos, os relatos da década dos anos 1990 continuam os mesmos em relação à atualidade. E é isso que a obra mostra: a cadeia é realmente um moedor de ser humano.

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