Gabriel Oliveira F. Arruda
É muito difícil imaginar o que seria do Cinema, especialmente o gênero de fantasia blockbuster, quase sempre pautado em emoção e espetáculo, sem O Senhor dos Anéis. A trilogia de adaptações comandadas por Peter Jackson e produzidas pela New Line Cinema foi um dos maiores gambitos da história da Sétima Arte, custando quase 300 milhões de dólares e 8 anos de produção, criando uma nova cultura de turismo na Nova Zelândia e assomando juntos dezessete estatuetas no Oscar. Baseados no épico de J.R.R. Tolkien, – por muito dado como inadaptável – os filmes deram nova vida à fantasia e inspiraram uma geração de cineastas a desafiarem os limites técnicos de suas obras.
Composto igualmente por caminhadas lentas através das paisagens neozelandesas quanto por sequências de batalhas gigantescas, O Senhor dos Anéis é uma história sobre as grandes jornadas que fazemos. Seja na missão de Frodo (Elijah Wood) para jogar o Um Anel nas chamas da Montanha da Perdição ou nas lutas que Aragorn (Viggo Mortensen) trava para reaver um trono por direito seu, mas que ele nunca desejou, a narrativa sobre a natureza do poder, a esperança em tempos difíceis e a força da amizade ressoa até hoje, 67 anos após sua publicação original.
Duas décadas após sua estreia nos cinemas brasileiros, voltamos ao idílico Condado e às cavernas sombrias de Moria para reexaminar o primeiro capítulo desta grande jornada, e como ele introduziu um dos legados cinematográficos mais duradouros de todos os tempos. A primeira parte da história é focada na formação do grupo titular de heróis, representantes de todos os povos livres da Terra-Média, e sua eventual separação durante a missão para destruir o Anel do Poder e acabar com o mal de uma vez por todas.
Após o monólogo introdutório de Cate Blanchett como a elfa Galadriel, narrando o forjamento dos Anéis de Poder e a artimanha de Sauron, Senhor do Escuro, somos jogados no Condado, uma paisagem campestre habitada por hobbits, um povo pequeno e feliz que, nas palavras de Bilbo (Ian Holm), dividem “um amor por todas as coisas que crescem”. Um lugar peculiar para se iniciar uma história sobre o embate épico entre o bem e o mal, com certeza, mas que faz sentido conforme sua narrativa se desenvolve, pois é na lembrança dele que os heróis se apoiam quando estão prestes a perder a esperança. Além disso, é lá que o filme oferece uma primeira impressão de seu minucioso design de produção, retratando uma unidade social completamente funcional e crível, se concretizando nas ilusões técnicas que criam a altura do hobbits, quase imperceptíveis até hoje.
E por mais que toda essa atenção aos detalhes tenha só aumentado de filme em filme, é talvez aqui, em seu primeiro encontro, que ela é mais impressionante: A Sociedade do Anel tem o dever não só de nos colocar dentro desse universo, mas também de nos convencer da lógica interna dele, de fazer com que essa minúcia converse com seus temas e sua narrativa, de verdadeiramente trazer o texto à vida de maneira que o resto da narrativa cresce organicamente ao longo de sua vida útil. Assim como os hobbits, Grant Major, designer de produção (indicado novamente ao Oscar recentemente por Ataque dos Cães), e o resto de sua equipe tiveram que desenvolver um amor pelas coisas que crescem, criando alguns dos lugares fictícios mais célebres da ficção, seja com efeitos práticos ou digitais.
Há uma qualidade teatral no roteiro do filme, assinado por Jackson, Fran Walsh e Philippa Boyens, uma paixão inerente à interpretação desse mundo no meio audiovisual e que move tanto suas cenas mais emocionalmente carregadas quanto os instantes levianos, cada vez mais raros conforme a narrativa avança. Cada ator leva seu texto com uma seriedade que beira à tosquice, mas que é sincera e comprometida o suficiente para nos imergir ainda mais nos dramas entre seus personagens e na maneira com que eles reagem aos acontecimentos: a todo momento o mundo parece prestes a acabar conforme o inimigo se aproxima de Frodo e do Anel, e nossos heróis quase sempre apenas escapam por um triz, entregando desespero, alívio e antecipação com intensidade palpável.
No entanto, na passagem da literatura para o audiovisual, alguns sacrifícios são feitos. Ao invés de acompanharmos os pensamentos de Frodo conforme o verdadeiro peso de sua missão aumenta, temos de ver essa mudança primariamente através de outros personagens, o que diminui seu impacto. Mais ênfase é dada ao monomito americano, posicionando Aragorn como seu herói. Como resultado disso, a percepção de Frodo no Cinema é a de um protagonista fracassado, negando a abordagem empática planejada por seu criador. Porém, se encararmos os filmes não como uma adaptação, mas como uma reinterpretação dos mitos introduzidos por Tolkien, esse tipo de sacrifício se torna mais um sinal do comprometimento com o qual todos os seus elementos foram retrabalhados para funcionar no Cinema, e não apenas emular a literatura.
Mas, quando falamos na ambientação e imersão da trilogia, a cereja do bolo é, e talvez sempre será, a trilha sonora operática do compositor Howard Shore. Criando provavelmente a mais vasta e complexa coleção de leitmotivs na história do Cinema, ele cria uma camada pulsante sobre todas as cenas, revestindo-as de emoção e antecipação, não apenas acompanhando o tom da narrativa, mas efetivamente refletindo-a e modificando-a junto dela. Quando você ouve o alegre tema do Condado, ou o místico dos elfos de Lothlórien, não há como confundi-los com qualquer outra coisa que não seja simplesmente O Senhor dos Anéis.
E em nenhum lugar essa construção de mundo através do som é mais evidente do que no tema dos heróis que embarcam na aventura: o tema da Sociedade do Anel vai dando seus primeiros passos conforme Frodo e Sam (Sean Astin), seu companheiro constante e amigo fiel, saem do Condado em direção à Valfenda, na esperança de impedir que o Anel caia na mão dos espectros que os perseguem. Começando de maneira tímida e esperançosa, ele ruge apenas quando o grupo conta com todos os membros presentes, e vai se fraturando no decorrer da narrativa conforme os vínculos entre seus personagens vão se desenvolvendo, criando uma sinfonia que vive no coração de sua história.
Embora à primeira vista sua narrativa épica possa ser erroneamente resumida em uma coleção de nomes estranhos, caminhadas sem fim por paisagens neozelandesas e lutas grandiosas entre exércitos inimigos, os três capítulos reexaminam os temas de esperança e amizade em face do mal, cada qual focando em uma parte diferente da jornada. A Sociedade do Anel se preocupa particularmente com a questão de sobre quem deve recair a responsabilidade do poder terrível e tentador que o Um Anel traz consigo. Como em todo bom início da jornada do herói, Frodo tenta recusar o chamado diversas vezes, implorando para que pessoas mais capazes do que ele arquem com a o peso do Anel, como Gandalf (Sir Ian McKellen), o mago que primeiro revela a natureza maléfica do objeto e encarga Frodo de carregá-lo até os elfos de Valfenda, e logo o adverte:
“Não me tente, Frodo! Não ouso pegá-lo. Nem mesmo para guardá-lo. Entenda, Frodo: eu usaria esse Anel com o desejo de fazer o bem. Mas, através de mim, ele exerceria um poder mais intenso e terrível do que se pode imaginar.”
Não é possível desassociar o poder do Um Anel de sua origem, por melhores que sejam as intenções do portador, o que fica claro mais a frente quando Boromir (Sean Bean) é corrompido pela mera ambição de ter o Anel em sua posse para ajudar seu reino. O primeiro passo da jornada de Frodo é justamente perceber que ninguém poderá carregar essa responsabilidade além dele, o menor e menos importante dos seres da Terra-Média, conforme Galadriel nos avisa durante o prólogo inicial: “chegará a hora em que os hobbits moldarão o destino de todos.”
Tolkien sempre manteve que O Senhor dos Anéis nunca foi uma alegoria para as suas experiências na Primeira Guerra Mundial, onde vários de seus amigos e escritores contemporâneos pereceram. No entanto, é impossível dizer que tais experiências não se façam presentes na jornada antes mesmo que qualquer grande conflito se inicie. Se mais para frente nos emocionamos ao ver as grandes sequências de batalha em que o destino do mundo é segurado por um fio, é porque em A Sociedade do Anel os elos entre seus personagens são estabelecidos com equivalente grandeza e cuidado, sem nunca medir palavras na adaptação de seu rico texto. Católico devoto, a crença de Tolkien na Queda do Homem e na progressão decadente da humanidade se faz presente também nesse texto, mas também está a fé na esperança que o permitiu passar pelos tempos mais difíceis.
E essa esperança implacável não se evidencia em nenhum par de personagens mais do que em Frodo e Sam, os hobbits mais famosos da Terra-Média e talvez o ship mais popular de toda a franquia. É fácil entender o porquê: a devoção e o carinho que existe entre ambos seria lida como romântica em qualquer contexto heteronormativo (com direito à toques tenros e os olhares mais doces da fantasia) e, tecnicamente, não há nada nos livros que exclua a validade dessa abordagem, nem mesmo o futuro casamento de Sam, que ainda passa a viver com Frodo e cria sua família com ele. Como Molly Ostertag (A Casa Coruja) escreveu para o site Polygon, em comemoração aos 20 anos dos filmes:
“Investigar a história do queer pode ser frustrante, já que muitas vezes nos damos conta de que nunca saberemos com certeza. É complicado aplicar rótulos modernos a pessoas que não os usavam em vida – mas rótulos modernos também incluem ‘heterossexual’ e ‘cisgênero’ tanto quanto ‘gay’ ou ‘transgênero’. Tudo que podemos fazer é olhar para as suas vidas e estar abertos às possibilidades.”
E nada te deixa mais aberto às possibilidades do que o momento em que Sam, sem saber nadar, quase se afoga tentando alcançar Frodo, que agora está mais decidido do que nunca a não arriscar a vida de mais ninguém em sua missão e seguir sozinho em direção à Montanha da Perdição. Sam, içado por Frodo para dentro do barco após um momento de desespero, lhe assegura que não tem intenção de quebrar sua promessa de nunca abandoná-lo, e os dois terminam num momento caloroso, antes de dar o próximo e mais sombrio passo na jornada. No momento mais crítico da Sociedade que, após a morte de dois de seus membros, começa a ruir, Sam se recusa a deixar seu mais querido amigo ir sem ele. Seja esse sentimento platônico ou romântico, é um amor profundo que se encontra no cerne da narrativa e que permite, de novo e de novo, que seus heróis triunfem contra todas as probabilidades.
Quando estreou, em janeiro de 2002 no Brasil, O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel encantou audiências não apenas por nos apresentar um mundo novo, povoado por seres místicos e males ancestrais, mas por ancorar sua fantasia em vários dos temas mais universais da ficção e apresentá-los sem cinismo, mas com verdadeira e profunda reverência. Mesmo que seu próprio elenco não reflita essa universalidade, a convicção de seu storytelling é tão pura e comprometida que é praticamente impossível não ser instantaneamente transposto para seu universo mágico. No início dessa jornada inesquecível, fica claro que as grande estrelas desse show não serão os embates épicos ou as grandes batalhas, mas os sacrifícios pessoais e os vínculos emocionais que unem a Sociedade, e a ideia de que o menor dos seres irá carregar o destino do mundo.