Vitória Lopes Gomez
“Essa é uma história real” é a frase que ocupa a tela enquanto Mohamedou Ould Slahi, interpretado por Tahar Rahim, caminha em uma praia no que seriam seus últimos momentos de liberdade por 14 anos. O quarto longa exibido no Festival do Rio 2021, O Mauritano traz à tona a história de Slahi, que, suspeito de recrutar terroristas para o atentado às Torres Gêmeas, foi capturado e enviado à Prisão de Guantánamo, onde permaneceu por anos sem nenhuma prova apresentada contra ele.
Baseado no livro autobiográfico do próprio Mauritano, O Diário de Guantánamo, o filme vai e volta entre os anos para contar os percalços de Mohamedou. Um estudante promissor, que saiu do seu país de origem no noroeste da África para estudar engenharia na Alemanha, Slahi foi mandado à base estadunidense devido a sua associação com membros da Al Qaeda. Por anos, ele foi mantido preso mesmo sem nenhuma evidência do envolvimento ou acusação formal contra ele. Quando o caso chega aos ouvidos da advogada Nancy Hollander, interpretada pela brilhante Jodie Foster, ela passa a trabalhar para garantir a justiça e tirá-lo de lá.
Guantánamo, um complexo penitenciário militar dos Estados Unidos em Cuba, foi usado pelo país para trancafiar supostos terroristas após o atentado de 11 de Setembro. Assim como Slahi, muitos prisioneiros foram torturados e abusados enquanto mantidos lá sem provas ou indiciamentos. Eles foram negados do seu direito a um julgamento, o governo norte-americano sequer chegou a acusá-los formalmente. Como os letreiros no filme lembram, dos 779 encarcerados, somente 8 foram julgados e condenados culpados – e 3 conseguiram recorrer à sentença.
A Prisão de Guantánamo, que é até hoje conhecida pelas violações aos direitos humanos, é quase um personagem em O Mauritano e representa a ‘guerra ao terror’ travada pelos Estados Unidos após o atentado. Em seu interior, as atrocidades e abusos cometidos pelos oficiais norte-americanos eram justificados somente pelas suspeitas e pelo ‘dever moral’ do combate ao terrorismo, sem a menor consideração aos direitos constitucionais.
Alternando entre o presente do longa e os diversos momentos do passado de Mohamedou, em janelas diferentes e em um ritmo dinâmico, sequências chocantes e indignantes expõem as violações por parte do governo. Para recriar algumas das torturas que Slahi enfrentou na prisão, Tahar Rahim chegou a ficar sem comer por três semanas e usou algemas e correntes nos pés até que sangrassem, em uma performance espetacular que não por menos foi reconhecida com uma indicação ao Globo de Ouro.
Os flashbacks do passado servem no seu propósito de só aprofundar o personagem de Rahim e O Mauritano acerta em não culpar ou inocentar Slahi. A assistente de Nancy, Teri Duncan (Shailene Woodley), quer saber se o cliente cometeu os crimes, ele insiste que não. O militar Stuart Couch (Benedict Cumberbatch) e seus compatriotas não precisam de evidências para afirmarem que sim, o julgamento é meramente um meio para o fim para os oficiais.
É Nancy quem lembra: sem provas concretas, suspeitas são suspeitas e a luta é para que a Constituição seja seguida. O prisioneiro só pode cumprir sua pena após o julgamento, mas Slahi, inocente ou culpado, havia sido sentenciado sem um. Na sua volta à cela, a performance da veterana Jodie Foster a rendeu um Globo de Ouro como Melhor Atriz Coadjuvante. Isso porque os critérios se pautam no tempo de tela: em cena, a Nancy de Foster exala a competência da advogada, misturando confiança e sensibilidade, e se faz o centro das atenções em toda aparição.
Com um elenco famoso e talentoso à disposição, o diretor escocês Kevin Macdonald, de O Último Rei da Escócia, trabalha com seus três protagonistas. Enquanto Slahi é vítima das violências do governo estadunidense, expostas em sequências tristes e chocantes, Hollander deixa de lado qualquer falso moralismo nacionalista e se atém aos princípios que norteiam sua profissão. Do lado oposto, o militar e advogado de acusação Couch, religioso, conservador, próximo às vítimas do atentado, é a perspectiva do americano patriota na narrativa.
Se a potência da história de Mohamedou acaba diluída nos conflitos morais dos seus companheiros de tela, os diferentes pontos de vista agregam à crítica que O Mauritano tem, por obrigação, de ter. Com uma tradição em filmes de guerra, até as produções americanas mais incisivas não fogem do seu patriotismo velado, mas a escolha de contar a história (ou pelo menos a maior parte dela) pela visão do prisioneiro, um homem muçulmano detido injustamente, foge do maniqueísmo usual. Ainda que eventualmente perca o foco entre tantas datas e lados, The Mauritanian usa das reflexões e dos questionamentos de Couch, de Teri e de outros personagens secundários para ressoar sua importância para além do caso de Mohamedou.
Não se pode tomar uma adaptação cinematográfica da vida real ou de um livro autobiográfico como a realidade, mas, fato é, O Mauritano traz à tona eventos e discussões importantes. Talvez em um filme que denuncie casos e instituições reais, essencialmente político como é, discutir seus méritos importe menos do que discutir sua relevância.
Conhecer a história de Slahi importa, mas O Mauritano sabe que o buraco ainda é mais embaixo: como o monólogo do protagonista de Rahim atesta, ‘a maior democracia do mundo’ está longe do exemplo de liberdade e justiça que se gaba de ser. Os letreiros finais mostram como só 7 anos após ser absolvido, Mohamedou finalmente deixou Guantánamo e não foi o único a ter uma estadia injusta por lá. Pior ainda, as sequelas da era Bush e da ‘guerra ao terror’ continuam, do preconceito e das ofensivas à população muçulmana, até em seus países, à continuidade das atividades em Guantánamo. Ao final, seja qual for o saldo da experiência cinematográfica, o que fica é o que importa: essa é uma história real.