Vitor Evangelista
Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o português Mosquito reúne dois importantes componentes dos filmes de guerra. Primeiro, apresenta uma figura central que passa por todos os infortúnios, próprios e dos demais, para chegar ao tão sonhado objetivo, nesse caso alcançar seu pelotão na selvagem Moçambique de 1917, passando por entre as entranhas da Primeira Guerra Mundial. E em segundo lugar, o longa faz uso da mente humana como inimiga de si mesma, pregando peças tanto no protagonista quanto no espectador.
Baseado livremente nos eventos reais da vida do avô do diretor João Nuno Pinto, Mosquito visita a Primeira Guerra fugindo dos conflitos na França, e dando camadas ao continente africano. Zacarias, o soldado cretino vivido com uma pessoalidade ardente por João Nunes Monteiro, caminha pelo inferno e por seus demônios pessoais para selar sua trêmula jornada do ‘herói’. É por ele que nós percebemos que os traumas da Guerra não são simples ou unidimensionais.
O roteiro elucida questões clássicas dos filmes de guerra (conflitos internos, dificuldades físicas e a auto sabotagem), mas o truque de mestre é quando dá o protagonismo no colo de um jovem de 17 anos, que no fundo não sabe nada da vida. O coming-of-age, ou longa de amadurecimento, de Zacarias é potente, tanto por lidar com um personagem de índole questionável, quanto por enfiá-lo em poucas e boas, que moldam sua mente e comportamento da maneira mais nociva possível.
Os coadjuvantes que o cercam fazem seu papel e logo saem de cena, mas são vitais para a formação do soldado. O sargento bigodudo lhe empresta os palavrões e a linha dura, além do racismo escarrado. Os escravos que conhece formam silêncios perturbadores. Fora isso, a figura das mulheres da vila é um ponto chave para o arco de queda e redenção que o filme se propõe a traçar.
Mosquito nunca perpassa comentários sociais, trabalhando muito no documentar dessa que é uma história demasiada sentimental de um familiar do diretor. O luso-moçambicano João Nuno Pinto, além de comandar atrás das câmeras, escreveu o argumento da trama, que virou roteiro nas mãos de Fernanda Polacow e Gonçalo Waddington. Por conta disso, muitas das atitudes grotescas de Zacarias passam batido, caindo numa ótica mais sensível e irretocável de alguém que significa muito ao realizador do longa.
A direção de Nuno Pinto investe em acariciar a arisca natureza africana. Ele filma tomadas longas e abertas, sabendo onde alocar seus personagens e como movê-los em tela. Nada soa fora do lugar em Mosquito, mesmo as mais de duas horas tomam pequenos fôlegos entre os núcleos que o protagonista visita. A fotografia de Adolpho Veloso, em casamento com a música de Justin Melland, induz a metamorfose da selvageria que o filme solidifica na figura do povo africano. No fim das contas, Mosquito ainda se trata de uma visão colonizadora, mesmo que fora dos eixos europeus que nos acostumamos a assistir.
A visão do ‘bom moço’ corrompido pela guerra de Zacarias, todavia, salienta que sua culpa em momento algum é sinônimo de redenção. A longa cena de ritual, seguida da sequência sexual, é exemplo maciço da falsa sensação de controle que o português trabalha para manter. Até a forma com a qual Mosquito retrata os cânticos, costumes e a vivência dos nativos de Moçambique busca iluminar o soldado como alguém digno. Se é digno de pena, simpatia ou ódio, resta ao espectador definir.