Hiroshima é um insigne relato antiguerra do frenético século XX

John Hersey transpõe o jornalismo tradicional e cria uma obra de caráter literário, humano e influente até os dias atuais

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As ruínas do antigo centro de promoção industrial de Hiroshima, atual Memorial da Paz

Adriano Arrigo

Em 1979, o célebre personagem Sargento Kurtz do filme Apocalypse Now! (de Francis Ford Coppola) trouxe em seu corpo e mente os tenebrosos reflexos de uma guerra que assassinou nada menos do que 1 milhão e meio de pessoas. Kurtz, preso na guerra do Vietnã, é a síntese de um conflito entre o racional e irracional despertado devido as atrocidades bélicas que viveu. Em uma das cenas clássicas do filme, Kurtz, deitado no chão, reflete e sintetiza o que viveu: o horror… o horror.

O horror é também o que nos espera nas páginas de Hiroshima. Poucas páginas, aliás, mas eficientes em relatar uma das feridas mais sensíveis da frenética história do século XX.

Diante desse inferno, legítimas intervenções artísticas afloram em meio às ruínas da guerra como forma de abrir espaço para compreender, ao menos, abstratamente, os trágicos ocorridos na cíclica história da humanidade. Quase sempre, essas intervenções alcançaram status de obras-primas, como, por exemplo o mangá Gen – pés descalços, ou, metaforicamente, o filme Hiroshima Mon Amour; e, porque não, o icônico Godzilla? O mais importante é saber que tais obras foram doações artísticas à humanidade com uma força necessária e quase sobrenatural para amortecer o peso das guerras.

Hiroshima aguenta firme seu fardo, muito, talvez, devido a John Hersey, o autor dessa obra, que teve seu relato indicado como um dos mais importantes do século XX. Para o jornalista Ben Yagoda, o autor de Hiroshima “tinha o olho e a orelha de um romancista e a ética de trabalho de um repórter”. A admiração por seus colegas não era por pouco. Nos meados da década de 40, Hersey já desempenha  um estilo próprio de jornalismo; coube a ele fazer sua doação artística à humanidade.

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A cidade destruída, em foto autografada pelo piloto responsável pelo bombardeio.

Mesmo que fosse sabido que dos 245 mil habitantes de Hiroshima, 78.150 morreram instantaneamente sob um calor de 6.000 C°, Hersey não prendeu-se em números de guerra. Para Hersey, pessoas são histórias, detalhes sortidos, miscelâneas de todo o gênero e, nesse caso, dor, muita dor.

Inicialmente dividido em quatro atos, Hersey caracteriza em seu relato apenas seis personagens entre os quase 200 mil mortos. São elas, as sra. Sasaki e Nakamura, e eles, os doutores Sasaki e Fujii e os eclesiásticos Kleinsorge e Tanimoto.

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Os sobreviventes

Hersey não poupa detalhes viscerais do horror vivido por essas pessoas sobreviventes. É aqui que sabemos que, por exemplo, o Dr. Sasaki viu seu hospital explodir e se transformar em “reboco, pó, sangue” e vômito (que) se espalhavam por toda parte”; ou que o Pr. Kleinsorge tromba no meio dos arbustos com uns vinte homens que lhe pedem água com “suas bocas reduzidas a chagas intumescidas e cobertas de pus”; ou que o reverdento Tanimoto vê mulheres com os desenhos de seus quimonos estampadas em suas próprias peles.

Um desfile interminável de desgraças, descreve Hersey, quando os personagens ainda pensavam que o que havia caído do céu era uma cesta de flores Molotov. Para além desse desfile, Hersey, através do pensamento legítimo e amargo de seus personagens, expõem valores essencialmente antibélicos que, posteriormente, lhe renderia o título de persona non grata pela revista Times, que, na época, glorificava o intervencionismo americano em outros países.

Além do mais, Hersey estava afrente do seu tempo, pelo menos como jornalista. As informações recolhidas em Hiroshima foram mescladas com uma literatura descritiva, direta e seca. Décadas mais tarde, coisa semelhante aconteceria em Apocalypse Now!, um cinema feito através de um retrato híbrido entre a psicologia e as sobreposições de imagens enigmáticas.

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O autor do livro, John Hersey, em 1958

Hersey estava caminhando com a modernidade, e como todo moderno, seu estilo foi um divisor de águas. Seu jornalismo tornou-se referência; aliás, Novo Jornalismo, como seria chamado dali em diante, em letras maiúsculas mesmo. Assim, a visionária revista The New Yorker, que também caminhava junto a Hersey, imprimiria seu relato em uma só vez. Evento histórico, mas que rendeu uma edição também histórica com direito a edição esgotada em poucas horas. E como as grandes obras, Hiroshima é atemporal, pois mesmo hoje, 70 anos após seu lançamento, é ainda uma das 30 reportagens mais acessadas no site da revista.

Por todos esses aspectos objetivos e subjetivos, Hiroshima é um triunfo tanto como obra literária quanto relato jornalístico. Lê-lo é como estar lá, observando pessoas desintegrar-se em dor e horror. Além do mais, a imersão proporcionada naqueles anos tétricos garante uma obra efetivamente antiguerra que só tem a contribuir às feridas deixadas que, mesmo após 70 anos, não possuem previsão de serem cicatrizadas.

 

 

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